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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

MUNDO ANTIGO E SEUS CONTAGIOS

CONTÁGIO
HISTÓRIA DA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS
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INTRODUÇÃO

As doenças constituem uma terrível ameaça para todo ser humano. Algumas são brandas, mas outras podem chegar mesmo a matar milhões de pessoas - como já ocorreu - espalhando-se por grandes regiões do mundo. Durante muitos séculos, não se sabia o que produzia as pestes e as grandes epidemias: um castigo divino? uma conjunção astrológica? uma mudança de clima? Foi preciso um longo caminho para que se pudesse compreender a causa das enfermidades transmissíveis e como se prevenir contra elas.
Hoje em dia, todos sabemos que certas doenças podem passar de uma pessoa para outra. Desde uma gripe banal, até diversas doenças muito graves, como cólera e aids, podem ser transmitidas de uma pessoa doente para outra sadia. Isso ocorre quando a doença é causada por microorganismos, como as bactérias ou vírus. Esses seres invisíveis, que são responsáveis por muitas doenças, multiplicam-se nos indivíduos doentes e podem passar deles para outras pessoas através de muitos caminhos: pela respiração, por excreções, pela picada de um inseto, etc. Há outros tipos de doenças que não são causadas por microorganismos; mas não iremos tratar delas, neste livro.
Quando se conhece o tipo de microorganismo causador de uma doença e o seu modo de transmissão, pode-se evitar que ele passe às pessoas sadias - através de várias medidas sanitárias e de higiene. Em certos casos, pode-se também produzir vacinas, que protegem as pessoas, mesmo se ficarem em contato com doentes. Por fim, em muitos outros casos, podem ser desenvolvidos remédios (como os antibióticos) que combatem esses microorganismos quando eles já se estabeleceram em um organismo, de tal forma a destrui-los.
O conhecimento de que muitas doenças são produzidas por microorganismos é, hoje, uma coisa banal. No entanto, esse é um conhecimento médico relativamente recente - com pouco mais de um século de idade. Foi apenas durante a segunda metade do século XIX que se estabeleceu a teoria microbiana das doenças. Durante centenas de anos, os médicos ignoraram a causa das enfermidades transmissíveis, que eram explicadas de modos que atualmente nos parecem absurdos. Os modos de prevenção e cura dessas doenças eram também, obviamente, muito diferentes dos de hoje.
Como se chegou a esse conhecimento atual? Por que fases passou a Medicina, em sua tentativa de compreender as epidemias e o contágio? Como surgiram as vacinas? Esses são alguns dos pontos que serão tratados nas páginas seguintes.
Este livro não irá abranger todos os aspectos da história da Medicina. Isso exigiria uma obra muitas vezes maior do que esta. Mesmo o assunto aqui tratado - as doenças transmissíveis e sua prevenção - é excessivamente amplo para ser estudado em detalhe em um trabalho como este. Será necessário deixar de lado vários aspectos, focalizando apenas alguns episódios mais importantes.
Iremos percorrer uma longa história, de mais de dois mil anos, para descobrir como diversos povos, em diferentes épocas, concebiam o processo de contágio. Ao longo dessa história, veremos uma grande mistura de superstições, de experimentos, de teorias diversas, e a luta contínua da humanidade contra doenças terríveis.
Por meio do estudo dessa história, será possível compreender como se desenvolve a evolução do pensamento humano, através de uma série de palpites, tentativas, erros e acertos. Veremos como algumas "certezas" causaram a morte e o sofrimento de milhões de pessoas. Por fim, estudando o surgimento da moderna teoria microbiana, veremos como foi gradualmente introduzido um maior rigor na pesquisa médica, resultado em importantes avanços. Pelo conhecimento desse caminho histórico, será possível perceber a enorme importância das medidas sanitárias e de higiene, capazes de evitar horríveis doenças - medidas simples mas que, infelizmente, continuam a ser ignoradas ou deixadas de lado, até hoje, no Brasil e em outros lugares.
. CAPÍTULO 1 - AS GRANDES PESTES

A MORTE RONDA
O que é uma grande epidemia? Que efeitos podem produzir as enfermidades transmissíveis, quando atingem muitas pessoas? Quem nunca viveu pessoalmente a experiência dessas doenças, nem pode avaliar o que elas significam. Por isso, é conveniente começar com a descrição de um caso histórico importante.
Daniel Defoe foi um importante escritor que viveu nos séculos XVII e XVIII. É o autor de um livro de aventuras bem conhecido: Robinson Crusoe. Ele escreveu em 1722 um outro livro menos famoso, o "Diário do ano da peste", em que descreve uma grave epidemia ocorrida em Londres, em 1665.
De tempos em tempos - como depois veremos - a Europa era varrida por grandes pestes, que matavam milhões de pessoas. Em 1663, uma dessas epidemias, originada na Itália ou vinda do oriente, atingiu a Holanda. Não existiam televisores, nem rádios, nem mesmo jornais para transmitir notícias. No entanto, através de cartas e pelos comentários de pessoa para pessoa, ficavase sabendo rapidamente o que acontecia. Nos outros países próximos, temia-se que a doença também surgisse.
Em 1664, o aparecimento de um cometa nos céus levou a muitas predições pessimistas. Segundo Defoe, os astrólogos de Londres anunciaram que a peste logo iria atingir a cidade. O pavor tomou muitas pessoas. Os mais impressionáveis começaram a ter sonhos em que viam um grande número de mortos. Pessoas alucinadas corriam pelas ruas, gritando e profetizando desgraças. Londres se encheu de magos, adivinhos, astrólogos, curandeiros e diversos tipos de charlatães, que davam conselhos, previam os acontecimentos futuros, indicavam antídotos infalíveis contra qualquer tipo de doença, vendiam talismãs mágicos para proteger da peste e, de muitas formas, lucravam com o temor do povo.
Nada aconteceu, no entanto, até o final de 1664. No fim de novembro ou início de dezembro, dois estrangeiros morreram, nos arredores de Londres, com os sintomas da peste bubônica. Como eram dois casos isolados, isso não produziu muita preocupação. Mas poucas semanas depois, uma outra pessoa morreu, na mesma casa onde esses dois primeiros haviam falecido, também com sinais da peste. Evitava-se falar sobre o assunto.
Nas duas regiões próximas, Saint Giles e Saint Andrews, a mortalidade normal era de 12 a 19 pessoas por semana. Logo, os números se elevaram um pouco, ultrapassando 20 por semana, no início de 1665. O número total de enterros em Londres, que era de 240 a 300 por semana, subiu a mais de 400, em janeiro. Mas as mortes não eram ainda atribuídas à peste. Um ou outro caso tinha sinais semelhantes ao dessa enfermidade; mas a maioria das mortes era atribuída a causas comuns.
Durante algumas semanas, há um frio rigoroso (é época de inverno, no hemisfério norte) e as mortes diminuem. Mas no fim de abril e início de maio surgem mais casos indubitáveis de peste, em Saint Giles e outros locais. No final de maio, as autoridades reconhecem que já morreram algumas dezenas de pessoas dessa doença
CAPÍTULO 2 - MEDICINA MÁGICA E RELIGIOSA

MAGIA E CONTÁGIO
A idéia moderna de contágio tem raízes muito antigas, no pensamento primitivo. Ela surgiu do pensamento mágico, pré-científico, que sobrevive em muitos povos, como os índios.
Não se pode saber ao certo como eram as concepções sobre enfermidades e medicina no período pré-histórico (antes da existência da escrita). Parecem sempre ter existido doenças, pois os fósseis de animais e homens pré-históricos mostram claros sinais de doenças que conhecemos. Por isso, é natural pensar-se que sempre houve uma preocupação com elas, que deve ter gerado hipóteses sobre suas causas.
Procura-se em geral "adivinhar" como eram essas concepções mais antigas estudando-se os chamados povos "selvagens" ou "primitivos" atuais (indígenas e aborígenes, que não possuem sistema de escrita). É claro que as idéias de um índio brasileiro atual (mesmo supondo que ele não foi aculturado) não devem ser iguais às de seus ancestrais de 5.000 anos atrás. No entanto, foram encontradas certas idéias muito comuns na maior parte dos povos "primitivos", e pode-se supor que elas tenham existido desde os tempos pré-históricos.
Embora o conceito científico de contágio seja moderno, a sua idéia geral é antiga e primitiva. "Contágio" significa a passagem de alguma coisa de uma pessoa (ou de um animal, objeto, etc.) para outra, pelo contato físico . Antes de se tornar um conceito médico, essa idéia surgiu como um conceito mágico.

Este curandeiro está "extraindo" uma enfermidade, introduzida por magia no corpo do doente. Uma concepção extremamente difundida por toda a humanidade, desde tempos remotos, é a de que se estabelece uma ligação ou vínculo com aquilo que tocamos. Em diversas práticas de magia, para se enfeitiçar uma pessoa e obter o seu amor, era necessário tocá-la com o dedo, ou obter algum objeto que tivesse sido tocado ou usado pela pessoa, pois assim se podia criar uma ligação com ela. Da mesma forma, na feitiçaria, para se influenciar uma pessoa, fabrica-se um boneco no qual se coloca alguma coisa dessa pessoa (cabelos, unhas, pedaço de tecido, etc.). Supõe-se que, assim, o boneco se torna ligado à pessoa e aquilo que se fizer com ele (por exemplo, espetando com alfinetes) irá repercutir também na pessoa (que ficará doente ou morrerá).
O contato direto entre um bruxo e uma pessoa era considerado o mais perigoso: acreditava-se que encostando um dedo ou mesmo pisando na sombra de uma pessoa, o mago poderia passar-lhe doenças, tirar sua vitalidade (roubar sua alma), etc.
CAPÍTULO 3 - MEDICINA GREGA

MEDICINA RELIGIOSA GREGA

A civilização grega antiga foi o ponto de partida de toda a cultura científica ocidental moderna. Até hoje, é um grego - Hipócrates - a quem chamamos de "pai da Medicina".
A Medicina grega marca uma importante etapa na evolução do pensamento médico. Inicialmente, ela se assemelhava à Medicina de outras nações: era uma mistura de concepções mágicas, religiosas e de receitas práticas para a cura das doenças. No entanto, aos poucos ela foi se separando da magia e da religião, tentando transformar-se em algo independente: um conhecimento das doenças, de suas causas naturais e de sua cura. O desenvolvimento da Medicina grega não foi rápido. O período em que se firma a concepção de uma Medicina naturalista é, aproximadamente, a época em que viveram Platão e Sócrates (aproximadamente 400 anos antes da era cristã) - o tempo de Hipócrates. No entanto, antes de estudar a visão médica de Hipócrates, é importante compreender a visão médica grega que existia antes de sua época.
Hipócrates: "O pai da medicina"
A antiga religião grega aceitava a existência de muitos deuses diferentes. Na literatura grega mais antiga, desde as obras de Homero, vários deles estão associados à produção e à cura de doenças.
Um dos deuses associados às doenças era Apolo. Ele e sua irmã Artemis são descritos na mitologia grega como podendo produzir doença e peste através de flechas lançadas sobre os homens. A "Ilíada" de Homero descreve, no seu primeiro livro, um caso desse tipo, que ilustra as concepções mitológicas gregas.
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CAPÍTULO 4: MEDICINA ROMANA

OS ROMANOS E OS VENENOS ("VÍRUS")
O império romano foi o herdeiro da cultura grega. Os romanos não desenvolveram um pensamento muito original, mas há vários aspectos da medicina romana que nos interessam, por sua relação com a transmissão de doenças e com as fases posteriores de nossa história.

Na antiga medicina de Roma, nota-se uma preocupação com venenos, que não existe na medicina grega. Em parte, isso pode se dever ao grande contato dos romanos com a África e com serpentes. Outro possível motivo é a difusão da prática de envenenar os inimigos. Os venenos mais poderosos possuem uma característica estranha, sob o ponto de vista médico: uma pequena quantidade deles é capaz de matar uma pessoa.
Plínio, chamado "o Velho", em sua grande obra "História Natural" (século I D.C.), fez uma compilação de tudo o que se sabia em sua época sobre animais, vegetais e minerais, descrevendo-os e dando seus uso médicos. Plínio diz que, entre os Romanos, o estudo de remédios só se desenvolveu após a divulgação dos trabalhos do rei Mitridates, de Pontos. Esse rei, segundo vários autores posteriores, foi o primeiro a fazer um estudo sobre antídotos.
Imagem do livro "História Natural", de Plínio "o velho".
Mitridates, o maior rei de seu tempo, que foi depois vencido por Pompeius, conforme se conta e conforme as evidências, foi um atento investigador dos problemas da vida, superando os que nasceram antes dele. Por seus esforços solitários, ele elaborou um plano de beber veneno diariamente, depois de tomar remédios, para se acostumar a eles e para que se tornassem inócuos. Foi o primeiro a descobrir vários antídotos, um dos quais é conhecido por seu nome. Ele também descobriu a mistura dos antídotos com o sangue dos patos de Pontos, pois eles se alimentam de substâncias venenosas.
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CAPÍTULO 5: O PERÍODO MEDIEVAL

A BAIXA IDADE MÉDIA
Após a queda do império romano, a Europa não desenvolveu nenhuma outra grande nação, durante séculos. O cristianismo se torna a única força que tenta unificar todos os povos europeus.
A fase inicial da Idade Média, na Europa, apresentou uma decadência geral de todos os conhecimentos. Após Galeno, não são conhecidos grandes autores médicos. No século IV, Oribasius de Bizâncio (325-403) escreve uma grande enciclopédia médica, em grego, sem acrescentar muita coisa a Galeno e outros autores antigos.
Apesar do desinteresse geral pelo estudo e pelo conhecimento erudito, alguns autores conservaram a tradição greco-romana. Um dos mais importantes foi Isidoro de Sevilha, que viveu aproximadamente entre os anos 570 e 636. Isidoro procurou compilar todo tipo de conhecimento, escrevendo uma espécie de enciclopédia. Entre muitos outros assuntos, ele tratou também da Medicina.
Isidoro se baseia principalmente em Galeno. Ele expõe e defende a doutrina dos quatro humores, sendo a saúde uma proporção harmoniosa entre as qualidades. Apesar dessa base teórica, Isidoro aceita a existência de contágio - provavelmente, baseando-se no conhecimento popular. Por exemplo, ao descrever a hidrofobia, ele afirma:
Hidrofobia quer dizer medo da água, pois os gregos chamavam a água de "hudor", medo de "phobos" (...). Ela surge ou pela mordida de um cão raivoso, ou por causa da espuma que cai do ar ao chão. Se um homem ou animal a tocar, ele imediatamente se tornará demente ou também ficará raivoso.
Ou seja: o contato direto (pela mordida) ou indireto (pela saliva espumante) pode transmitir a doença. Mas como poderia uma harmonia entre os humores ser quebrada por um contato com a saliva do cão raivoso? É difícil conciliar o fato, de conhecimento popular, com a teoria.
Ao falar da peste, Isidoro também admite o contágio:
. CAPÍTULO 6: DO PERÍODO DAS GRANDES DESCOBERTAS AO SÉCULO XVIII

AS GRANDES NAVEGAÇÕES E AS NOVAS DOENÇAS
No final do século XV e início do século XVI, as grandes navegações européias em direção à Ásia e América produziram, entre outros efeitos, grande intercâmbio de enfermidades.

Febre Amarela

A febre amarela era desconhecida na Europa, antes da época da descoberta da América. É possível que a doença seja originária da própria América, embora alguns acreditem que os próprios europeus a levaram para lá, da África.
Em 1493, por ocasião da segunda viagem de Colombo à América, houve uma epidemia no Haiti, possivelmente de febre amarela. Cerca de 80% dos espanhóis morreram. Foi o primeiro contato dos europeus com essa enfermidade. Posteriormente, a doença se tornou bastante conhecida entre todos os conquistadores. Era caracterizada pela coloração amarela da pele do doente (que dá o nome à doença), vômitos negros, fortes dores lombares (como se tivesse levado uma pancada nas costas, na altura dos rins). Entre o terceiro e o quinto dia, a maior parte dos doentes morria.
Chegada de Colombo a América em 1943.
Em 1545, houve uma grande epidemia no México, que talvez tenha sido de febre amarela. Estima-se que na cidade do México morreram 800.000 pessoas, 150.000 em Tlaxcala e 100.000 em Cholula. Em 1598, os ingleses tiveram que abandonar Porto Rico por causa da febre amarela. E bem mais tarde, Napoleão teve que desistir do Haiti e da conquista da América, pois 23.000 dos 30.000 soldados que enviou para lá, morreram de febre amarela.
A primeira descrição detalhada da enfermidade data de 1648. Um cronista da época, Lopez de Cogulludo, descreveu os sintomas da doença, que começava com uma gravíssima e intensa dor de cabeça e de todos os ossos do corpo, tão violenta que parecia que se desconjuntavam e que uma prensa os comprimia. Pouco depois, sobrevinha um calor muito intenso, ocasionando delírios em muitos, mas não em todos. Em seguida, alguns apresentavam-se com vômitos como de sangue podre, e deste, poucos ficavam vivos.
CAPÍTULO 7: A VARÍOLA E A DESCOBERTA DA VACINAÇÃO

A VARÍOLA E SUA PREVENÇÃO
A varíola (também chamada antigamente de "bexiga") era uma enfermidade que hoje se considera extinta em todo o mundo. Foi, no entanto, um terrível problema durante séculos.
A manifestação da varíola se inicia pela febre, seguida pelo aparecimento de muitas erupções com a forma de pequenos pontos. Eles aumentavam durante uma semana, podendo também atingir a laringe. As pústulas se espalhavam pelo corpo todo, inclusive pelo rosto. Quando o doente sobrevivia, as pústulas secavam e caiam duas ou três semanas depois.
O início da varíola era semelhante à popular catapora. No entanto, a doença era muito mais perigosa: matava uma grande parte das pessoas atingidas, produzindo danos permanentes nas que se salvavam: deformações físicas, cegueira e grandes cicatrizes.
O nome da doença vem do latim "varius", usado por Plínio e Celsus para indicar uma enfermidade com pontos na pele. No entanto, a varíola propriamente dita não parece ter sido conhecida na Europa, antes da Idade Média. Nessa época, aparecem as primeiras descrições da doença por médicos árabes: Rhazes e Avicena.
Supõe-se que os árabes tenham espalhado a varíola pela Palestina, Síria, Egito, Pérsia e depois Espanha. Os cruzados levaram a enfermidade para a Europa, onde ela se tornou comum a partir dessa época. Posteriormente, os europeus se encarregaram de espalhar também a doença. No México, a varíola foi introduzida por um escravo negro das forças espanholas e matou a metade dos habitantes. A doença foi chamada Matla-zahuatl. Segundo Torquemada, morreram 800.000 nativos em 1545 e 2.000.000 em 1576. Atribui-se também à varíola grande parte da redução dos índios da Califórnia.
Mas a enfermidade não surgiu no mundo na Idade Média. Algumas múmias egípcias, como a de Ramsés V, morto em 1157 antes da era cristã, apresentam erupções que são atribuídas à varíola. Em muitos povos, a doença era tão importante que era associada a divindades específicas. Na Índia, a deusa Sitala Mata era invocada para a cura dessa doença. No Japão, uma figura do herói Tametomo, que se contava ter vencido o demônio da varíola, era colocado no quarto dos doentes para ajudar na sua recuperação. Na China, os deuses Ma-Chen e Pan-Chen estavam associados à doença. Na África, o deus da varíola entre os Yorubás era Sopona, que foi depois introduzida no Brasil com os nomes de Omolu e Obaluaê.
CAPÍTULO 8: MIASMAS OU MICROORGANISMOS?

CHEIROS, GASES E A PREVENÇÃO DAS DOENÇAS
Durante o século XVIII e início do século XIX, houve uma grande melhora da saúde pública. É curioso que essa melhora não foi produzida por nenhum conhecimento médico novo: ela se deu por medidas sanitárias inspiradas pelas velhas idéias sobre os miasmas.
Desde o fim do império romano, as preocupações com limpeza, na Europa, haviam se reduzido muito. A água era obtida de qualquer tipo de fonte, de rios, de chafarizes públicos, de poços sujos. Praticamente não existia água encanada. Também era rara a existência de esgotos. Quando existiam, misturavam-se à água que era utilizada para todos os fins domésticos.
Em algumas cidades, os excrementos eram coletados e transportados para longe em carroças, mas era mais comum que fossem simplesmente lançados à rua. O próprio chão das casas - de terra ou de madeira - ficara impregnado por urina de cães e de pessoas, cerveja e outras substâncias. Somente quando ocorriam as pestes, surgiam hábitos de limpeza, como o de varrer as casas e as ruas.
Até mesmo os médicos podiam se mostrar avessos às medidas sanitárias. Em 1760 não existiam privadas em Madrid. Os excrementos eram jogados pelas janelas das casas à noite, sendo removidos no dia seguinte pelos limpadores. O rei ordenou que se construisse uma privada em cada casa, mas o povo se opôs violentamente à medida. Os médicos protestaram, dizendo que a sujeira das ruas era útil, pois absorvia as partículas insalubre do ar. Se as ruas não fossem sujas, essas partículas atacariam as pessoas.
A limpeza corporal e das roupas era rara e precária. Os perfumes, utilizados pelos ricos, eram um substituto dos banhos, e não seu complemento. É verdade que houve épocas em que os banhos públicos eram muito freqüentados, mas com um objetivo especial: serviam de local para encontros sexuais. Proibidos os banhos mistos, o interesse pelo asseio diminuiu muito. Havia até mesmo preconceito contra os banhos, que podiam produzir enfermidades. No século XVIII, comentava-se que a peste atacava primeiramente as pessoas que lavavam suas roupas com sabão.
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CAPÍTULO 9: O PROCESSO DE TRANSMISSÃO DAS DOENÇAS

A DESCOBERTA DE SEMMELWEIS: OS MÉDICOS PODEM TRANSPORTAR A MORTE
Enquanto se faziam as primeiras descobertas de seres microscópicos associados a doenças, uma linha de investigações completamente diferente levou à descoberta do meio de transmissão de algumas enfermidades. Neste capítulo vamos estudar a descoberta do processo de transmissão da febre puerperal. No próximo capítulo, a do cólera.

Semmelweis. "Febre puerperal" é o nome de uma doença que ocorria nas maternidades, matando milhares de mães e crianças. Esse nome descrevia a fase em que a enfermidade ocorria: ela era observada no "puerpério" - o período logo após o parto.
A doença era conhecida desde a Antigüidade, mas aumentou muito a partir do século XVII. Coincidentemente, essa foi a época em que os médicos começaram a se dedicar aos cuidados do parto. Antes disso, o nascimento das crianças era acompanhado apenas por parteiras.
Entre 1652 e 1862 foram registradas 200 epidemias da doença. Era comum que 1/10 ou mais das mães morressem após o parto. Freqüentemente, os bebês também morriam, com sintomas parecidos. Em certos casos, nas fases mais intensas das epidemias, morriam todas as mulheres que entravam nos hospitais. A enfermidade praticamente só ocorria nos hospitais - os partos realizados em casa, por parteiras, raramente eram seguidos pela febre puerperal.
Atualmente, sabe-se que a doença é uma forma de infecção generalisada, que começa no útero e se espalha por todo o corpo, causada por estreptococos. A causa inicial da infecção é a entrada de germes por meio de mãos sujas, instrumentos cirúrgicos, contato com roupas sujas, etc. Como o útero fica ferido após o parto e o desprendimento da placenta, torna-se fácil uma infecção. Os sintomas iniciais são febre, delírio, dores muito intensas. A infecção atinge todos os órgãos e a morte era quase sempre a conseqüência final.
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CAPÍTULO 10: O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA MICROBIANA DAS DOENÇAS

PASTEUR, BÉCHAMP, E AS DOENÇAS DOS BICHOS-DA-SEDA


Louis Pasteur. Na década de 1860, houve importantes avanços na compreensão do papel de microorganismos em doenças contagiosas. É nessa época que Pasteur desenvolve o seu primeiro estudo que teve relação direta com problemas médicos: a pesquisa da causa da enfermidade dos bichos-da-seda. A quase totalidade dos livros indica que, nessa ocasião, Pasteur iniciou o estudo científico da teoria microbiana das enfermidades. Como veremos, a história não foi bem essa. Pelo contrário: nesse episódio, Pasteur foi um opositor da teoria microbiana . A versão que será apresentada aqui será muito diferente daquilo que se costuma descrever sobre o episódio. Por isso, a investigação da doença dos bichos-da-seda será contada com certo grau de detalhe, a fim de não parecer que estamos falseando a história.
A criação de bichos-da-seda era de grande importância econômica na França. A produção de casulos para fiação da seda atingiu, em torno de 1850, a mais de 20.000 toneladas por ano. No entanto, a partir de 1853, a produção caiu progressivamente, chegando a apenas 4.000 toneladas em 1865, por causa de uma enfermidade que dizimava as criações. A mesma doença atingiu também, na mesma época, os bichos-da-seda da Itália, Espanha e outros países vizinhos.
Houve sucessivas tentativas governamentais de debelar a enfermidade. No final da década de 1850, Academia de Ciências de Paris constituiu uma comissão para estudar as causas da morte dos bichos-da-seda e propor meios de prevenção contra a enfermidade. O relator da comissão foi o naturalista Armand de Quatrefages de Bréau (1810-1892).
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CAPÍTULO 11: APERFEIÇOAMENTO E DIFICULDADES DA TEORIA MICROBIANA

AS BACTÉRIAS CAUSADORA DE DOENÇAS E OS POSTULADOS DE KOCH

O avanço científico é gradual e recebe contribuições de muitas pessoas que são desconhecidas pela história. Raramente se pode dizer que um indivíduo isolado foi responsável por algum passo significativo. No entanto, há certo consenso de que Robert Koch (1843-1910) foi a pessoa que mais contribuiu para criar uma bacteriologia científica, no século XIX.
Koch foi um médico que, formando-se em 1866, tornou-se um clínico rural. Em 1871, fixou-se em Wollstein, uma cidade com 2.000 habitantes. No seu tempo vago, Koch realizava estudos em um laboratório que montou em sua própria casa. Ele havia sido aluno de Henle que, como vimos, defendeu na década de 1840 que as doenças contagiosas eram causadas por seres vivos microscópicos. Koch aceitava essa idéia e conhecia os trabalhos que haviam se desenvolvido na década de 1860. Pensava, no entanto, que Pasteur e outros pesquisadores eram muito apressados, tiravam suas conclusões sem o rigor necessário.
Robert Koch trabalhando em seu laboratório.
Na região em que Koch morava, o antraz era uma enfermidade conhecida. Com um microscópio que comprou, Koch estudou essa enfermidade, repetindo inicialmente alguns passos básicos. Estudou o sangue de animais doentes mortos e sempre encontrou neles os mesmos bacilos. Estudou o sangue de animais sadios e verificou que nunca encontrava esses bacilos.
Realizou, em seguida, testes de transmissão da enfermidade, com ratos. Fez uma pequena incisão na raiz da cauda dos animais, esfregando um pouco de sangue de antraz na ferida. No dia seguinte, o rato estava morto. O sangue do animal morto estava cheio de bacilos, que pareciam ter se multiplicado. Koch usou o sangue do primeiro rato aplicando-o em um segundo, com o mesmo resultado. Faz uma série de 30 transmissões sucessivas, para se convencer de que o efeito era sempre o mesmo.
. CAPÍTULO 12: O SÉCULO XX: SUCESSOS E DIFICULDADES

AVANÇOS DO CONHECIMENTO
Seriam necessários muitos outros capítulos para discutir o desenvolvimento de nossa história ao longo do século XX. Não será possível fazer isso. As principais lições já foram apresentadas e, de qualquer forma, é impossível fazer um estudo histórico completo. Veremos apenas as linhas gerais que se desenvolveram após o século XIX, delineando as tendências, sucessos e dificuldades do período mais recente.
Ao longo de todo o período que foi aqui estudado, observa-se um lento processo de avanço do conhecimento. A partir de idéias vagas sobre o contágio, chegou-se no século XIX a uma compreensão do processo de transmissão de doenças: as doenças transmissíveis são causadas por seres vivos microscópicos, que se reproduzem dentro dos indivíduos doentes, podendo depois ser transferidos a pessoas sãs pelo ar, pelo contato físico, por dejetos que se espalham pelo solo ou pela água, por objetos sujos, ou mesmo por transportadores (vetores) animais - geralmente insetos.
Pode-se evitar a transmissão dessas doenças conhecendo-se o modo pelo qual cada uma se transmite e através de cuidados com os enfermos (impedindo que eles disseminem os microorganismos causadores da doença), controlando os vetores, tomando cuidados com a água, etc. - dependendo, em cada caso, do conhecimento do processo de transmissão. Em certos casos, é possível também proteger as pessoas sãs através de "vacinas" que produzem uma versão branda da enfermidade e dão depois imunidade contra ela.
Ao longo do século XX, prosseguiram as linhas de trabalho iniciadas no século anterior:
- identificação de microorganismos causadores de doenças;
- identificação de processos de difusão desses microorganismos;
- identificação de vetores;
- busca de vacinas.
CRONOLOGIA

Povos primitivos (pré-história) - Crenças sobre magia e transmissão de doenças por contato.
3.000 antes de Cristo - Mesopotâmia - medicina religiosa.
1.000 a. C. - Índia - doenças produzidas por vermes invisíveis; regras de purificação
1.000 a. C. - Hebreus - medicina religiosa - impurezas causam doenças
600 a. C. - Grécia - templos dedicados a Asclepios, deus da medicina
430 a. C. - Ocorre uma grande peste em Atenas, descrita por Tucídides
400 a. C. - Grécia - medicina de Hipócrates
350 a. C. - A teoria dos quatro elementos é sistematizada por Aristóteles
séc. III a. C. - Início do desenvolvimento de aquedutos e esgotos em Roma
séc. I d. C. - Roma - Plínio, o Velho, escreve a obra "História natural"
séc. I d. C. - O filósofo atomista Lucretius discute "sementes" de doenças
séc. II d. C. - Cláudio Galeno sistematiza a medicina racionalista, baseada nos humores
séc. II d. C. - A astrologia médica é sistematizada por Cláudio Ptolomeu

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