JOHN BRIGHT
HISTÓRIA
DE
ISRAEL
7a edição, revista e ampliada
a partir da 4a edição original.
Introdução e apêndice
WILLIAM P. BROWN
PAULUS
106 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
B. O AMBIENTE HISTÓRICO DAS NARRATIVAS PATRIARCAIS
1.Os Patriarcas no contexto da primeira metade
do segundo milénio
Quando as tradições são examinadas à luz da evidência, a primeira afirmação a ser
feita é a que já foi sugerida, isto é, que a história dos patriarcas enquadra-se
autenticamente no ambiente do segundo milénio, especificamente no ambiente dos
séculos descritos no capítulo precedente, e não no ambiente de qualquer outro período
posterior. Isso pode ser registrado como um fato histórico. A evidência é tão grande que
não temos nenhuma necessidade de reconsiderarmos o assunto.17
a. Os primitivos nomes hebraicos no contexto do segundo milénio. Primeiramente,
os nomes que aparecem nas narrativas patriarcais enquadram-se perfeitamente numa
classe que sabemos que foi corrente tanto na Mesopo-tâmia como na Palestina no
segundo milénio, especificamente entre o elemento amorita da população.18 Por
exemplo, os nomes dos próprios patriarcas:
"Jacó" ocorre num texto do século dezoito de Chagar-bazar na Alta Mesopotâmia
(Ya'qub-el) como o nome de um chefe hicso (Ya'qub-'al) e como um topónimo palestino
numa lista do século quinze de Thutmosis III. Nomes com os mesmos radicais são
também encontrados numa lista egípcia do décimo oitavo século, em Mari, e em outras
partes. O nome "Abraão" aparece em textos babilónios da Primeira Dinastia e
possivelmente nos textos das Execrações,19 enquanto nomes contendo os mesmos
componentes são novamente encontrados em Mari. Embora não apareça o nome "Isaac",
nem encontremos o nome "José", ambos são de um tipo caracteristicamente antigo.
Além disso, "Nacor" ocorre nos textos de Mari como o nome de uma
"Cf.AIbright, Y6C, pp. 47-95; também BA XXXVI, 1973, pp. 5-33; H. H. Rowley, "Recent Discovery and the
Patriarchal Age" (TheServantoftheLordandOtherEssays, Oxford: Blackwell, 1965, pp. 283-318:Wright, BAR, cap.
III;A. Parrot, AbrahamandHis Times, 1962. Fortress Press. 1968; H. Cazelles. "Patriarches" (H. Cazelles eA. Feuillet,
eds.. Suppiementau Dictionnaire de Ia Bible, vol.VII, Fase XXXVI [Paris: Letouzey etAné. 196)], cols. 81-156; R.
deVaux, EHI, l, Part. l. 'The Patriarchal Traditions".
"Veja W. F.AIbright. "Northest-Semitic Names in a List ofEgyptian SIaves from the Eighteenth Century B. C",
1AOS, 74 (1954), PP. 222-233; M. Noth, Die israelitischen Personeniiamen im Rahmen der gemeinsemitischen
Namengebung, BWANT, 111:10(1928);
idem. ZDPV, 65 (1942), pp.9-67 (também pp. 144-164); idem, "Mari tind Israel' (Geschichte undAlles Teslament, G.
Ebeling, ed., J-C. B. Mohr. Tubinga, 1953, pp. 127-152); idem, JSS, l (1956), pp. 322-333. E veja agora a importante
obra de H. B. Huffmonn, Amorite Personat Names the Mari Texts (The Johns Hopkins Press, 1965).
"Cf.AIbright. BASOR, 83 (1941), p. 34; 88 (1942), p. 36; JBL, LI V (1935), pp. 193-203.
OS PATRIARCAS 107
cidade (Nakhur) nas proximidades de Harã (cf. Gn 24,10). Os textos assírios posteriores
(os quais conheciam "Nakhur" como "Til-nakhiri") também apresentam uma
"Til-turakhi" (Terah) e uma "Sarugi" (Serug). Dos nomes dos filhos de Jacó,
"Benjamim" aparece nos textos de Mari como uma grande confederação de tribos. O
nome "Zabulon" ocorre nos Textos das Execrações, como os nomes que têm as mesmas
raízes que os de Gad e Da são conhecidos em Mari. "Ismael" e talvez "Levi" ocorrem
em Mari, e nomes afins de "Aser" e "Issacar" são encontrados numa lista egípcia do
décimo oitavo século.20
A isto deve ser adicionado os textos ainda mais antigos de Ebla, onde — como nos
foi dito21 — numerosos nomes próprios da Bíblia que nos são familiares são
encontrados: Abrão, Eber (cf. Gn 10,21ss; 11,14ss), Ismael, Esaú, Saul, Davi, Israel e
outros. Da mesma forma é mencionado que as cidades trazem nomes de vários
antepassados de Israel (cf. Gn 11,10-26):
Phaliga (Peleg), Sarugi (Serug), Til-turaki (Terá), Nakur (Nacor) e Harã.
É certo que em nenhum destes casos nós provavelmente nem mesmo tenhamos uma
citação dos patriarcas bíblicos. Mas a profusão de tais nomes em textos contemporâneos
demonstra claramente que a Alta Mesopotâmia e o norte da Síria continham de fato uma
população parecida com os antepassados de Israel na Idade do Bronze média e séculos
antes. Ambos reforçam as crenças na antiguidade da tradição e adiciona verossimilhança
às asserções da Bíblia que os antepassados de Israel tinham migrado desta área. O fato
de que exemplos de alguns destes nomes podem ser encontrados em textos desde o
primeiro milénio não muda essa impressão. Os nomes são de tipo primitivo e não são
certamente característicos da nomenclatura israelita tardia. Realmente em alguns casos
seu significado aparentemente não é mais compreendido pêlos escritores bíblicos, os
quais repetidamente tinham se utilizado de etimologias populares para explicá-los.22
Nenhum dos nomes dos patriarcas e pouco dos nomes a eles relacionados ocorreram
como nomes próprios novamente em Israel durante o período bíblico. Assim, as narrativas
patriarcais por esta razão são muito autênticas.
b. Costumes patriarcais no contexto do segundo milénio. Numerosos incidentes das
narrativas do Génesis encontram explicação à luz dos costumes vigentes no segundo
milénio. Os textos de Nuzi, que refletem a lei consue-
"Cf. AIbright, JAÓS, 74 (1954), pp. 227-231. "Jó" também ocorre nesta lista, nos Textos das Execrações, e alhures.
"U. G. Pettinato, BA, XXXIX, 1976, pp. 42-52; D. N. freedman, BA XL, 1977, pp. 2-4; P. C. Maloney, BARev.. IV,
1978, pp. 4-10. Mas conforme a advertência dada no prólogo, p. 38 e na nota 29. "Cf.deVaux.fHd.pp.^ss.
108 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
tudinária de uma população predominantemente humana na região oriental do Tigre no
décimo quinto século, são de modo particular de grande utilidade aqui. Embora eles
remontem ao fim da idade patriarcal, e provenham de uma região em que os patriarcas
hebreus nunca peregrinaram, sem a menor dúvida eles encerram uma tradição legal que
era muito mais difundida e muito mais antiga. Deve-se também lembrar que até o
décimo oitavo século a população semítica da parte superior do Crescente Fértil estava
muito misturada com os hurrianos e que alguns séculos mais tarde os hurrianos eram ali
o elemento predominante. Seria realmente surpreendente que seus costumes não fossem
conhecidos da população "amorita" daquela área — de quem eles podem ter recebido
alguns deles. De qualquer modo, os textos de Nuzi projetam luz sobre numerosos
incidentes, de outro modo inexplicáveis.23 Por exemplo, o medo de Abraão (Gn 15,1-4)
de que seu servo Eliezer fosse seu herdeiro se entende à luz da adoção do escravo como
era praticada em Nuzi. Os casais sem filhos adotavam um filho que os servia durante
toda a vida e seria seu herdeiro depois da morte. Mas se nascesse um filho natural, o
filho adotivo tinha de ceder seu direito à herança. Há também o caso de Sara, que deu
sua escrava Agar a Abraão como concubina (Gn 16,1-4). Com efeito, em Nuzi o
contrato matrimonial obrigava a mulher, se não tivesse filhos, a providenciar uma
substituta para seu marido. Se nascesse um filho dessa união, ficava proibida a expulsão
da esposa-escrava e de seu filho — isso explica a relutância de Abraão em despedir
Agar e Ismael (Gn 21,10ss). No caso das histórias entre Labão e Jacó, os textos de Nuzi
projetam uma luz especial. A adoção de Jacó por Labão, a condição que lhe foi imposta
de não tomar outras mulheres além das filhas de Labão (Gn 31,50), o ressentimento de
Lia e Raquel contra Labão (Gn 31,14ss) e, finalmente o roubo, feito por Raquel, dos
deuses de Labão,24 são todos costumes paralelos aos de Nuzi. E poderíamos acrescentar
novas ilustrações.
Tais paralelos não se limitam aos textos de Nuzi, porque há também evidências de
que eram vigentes costumes parecidos com relação a casamento, adoção, herança e
semelhantes em várias partes do Crescente Fértil no segundo milénio. Por exemplo, um
contrato de casamento do décimo quinto século de Alalakh, no norte da Síria (onde a
população foi durante muito
"Além das obras relacionadas na nota 17, cf. C. H. Gordon, Biblical Customs and the Nua Tablets, BA, III (1940),
pp. 1 -12; idem, Jhe Wortdofthe Oíd Testament, Doubleday, 1958, pp. 113-133: R. T. 0'callaghan, CBQVI (1944), pp.
391-405; e especialmente E. A. Speiser, Génesis (AB, 1964), passim, onde se discutem uns vinte paralelos.
"O significado da posse dos deuses é disputado. Ele provavelmente não liga o título à herança (assim Speiser, op.
cit., pp. 250ss:
Anne E. Darffkorn, JBL, LXXVI, 1957, pp. 391-405); mas pode ter se constituído num apelo para a liderança na
família; cf. M. Greenberg, 1BL, LXXXI, 1962, pp. 239-248. Os deuses certamente tinham alguma importância além
do seu valor intrínseco, pois Labão parecia mais tocado com a perda deles do que com a perda de sua propriedade e
de suas filhas.
OS PATRIARCAS 109
tempo hurriana), indica que o pai podia desdenhar a lei da primogenitura e designar o
filho que seria o "primogénito". Aqui o marido estipula que se sua mulher não lhe der
filho, sua sobrinha (não uma escrava) lhe deverá ser dada em casamento, mas que o
filho da primeira mulher, se depois ela tiver um filho, seria o "primogénito", mesmo se
ele tivesse outros filhos antes de sua outra mulher (ou de suas outras mulheres). Aqui
vem novamente à baila o incidente de Sara e Agar, mencionado acima. Mas devemos
lembrar- nos também do modo como Jacó escolheu Efraim como "primogénito", em vez
do filho mais velho de José, Manassés (Gn 48,8-20) e repudiou seu próprio
primogénito, Rúben, em favor de José, o filho de sua mulher favorita, Raquel (Gn
48,22; 49,3ss; cf. ICr 5,lss).25 Esta prática, que parece ter sido muito difundida na idade
patriarcal, foi explicitamente proibida por uma lei israelita posterior (Dt 21,15-17).
Poderíamos também acrescentar mais ilustrações, porém não temos espaço para tanto .
A força destes paralelos e de outros que poderiam ser mencionados não deve ser
minimizada. Por si mesmos eles não provam que as tradições patriarcais alcançam o
segundo milénio, menos ainda nos permitem fixar os patriarcas em nenhum século
específico. Os paralelos são, de fato, de valor desigual. Em alguns casos eles estão bem
próximos e marcantes, em outros eles são menos exatos do que suposto, enquanto em
outros casos paralelos melhores foram encontrados em séculos tardios.26 Alguém
poderia argumentar que os costumes praticados numa área tão vasta, e durante séculos,
com apenas algumas mudanças graduais, poderiam ter colorido as tradições patriarcais
numa data relativamente tardia e não necessitam, portanto, de apresentar características
genuinamente arcaicas transmitidas de um passado distante.27 Mesmo que estes
paralelos fossem aceitos como válidos, eles não comprovam a antiguidade das tradições
patriarcais e de maneira nenhuma contradizem as tradições, mas quando tomada com
outras evidências, a tendência é apoiá-las. De qualquer modo, é fato que os únicos
paralelos bíblicos próximos a esses costumes são encontrados nas histórias dos
patriarcas, e não naquelas sobre os tempos recentes. Além disso, estes costumes não
aparecem na lei israelita tardia; a significação de muitos deles parece que não foi mais
entendida no décimo século, quando a narração do Pentateuco foi escrita pela primeira
vez. (Note-se, por exemplo, como a história do Génesis, t^pítulo 31, apresenta somente
o lado burlesco do roubo de Raquel e o
"Cf. 1. Mendelsohn, BASOR, 156,1959, pp. 38-40; D. J.Wiseman, AOTS, pp. 127ss. "Veja as advertências e
avaliações equilibradas de deVaux, EHI, pp. 241-256. "Veja especialmente os trabalhos deVan Seters e Thompson
citados na nota 12.
110 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
escondimento dos deuses de Labão, e parece totalmente inconsciente dos aspectos legais
do incidente). Somos forçados a concluir que as narrativas patriarcais refletem
autenticamente os costumes sociais domésticos vigentes no segundo milénio.
c. As Peregrinações dos Patriarcas e seu modo de vida no contexto do Segundo
Milénio. Além do que dissemos acima, é evidente agora para nós que o modo de vida
dos patriarcas e a natureza de suas peregrinações como são descritas no Génesis,
enquadram-se perfeitamente no meio cultural e político dos começos do segundo
milénio.
Com efeito, os patriarcas são descritos como seminômades que viviam em tendas,
vagueando para cima e para baixo na Palestina e terras limítrofes, à procura de
pastagens para os seus rebanhos e, ocasionalmente demorando um pouco mais na
Mesopotâmia e no Egito. Não eram eles verdadeiros beduínos. Não vagueavam pelo
deserto, nem sequer se aventuravam dentro dele, a não ser seguindo os caminhos onde
era disponível uma quantidade conveniente de água, como, por exemplo, o caminho do
Egito. Eles frequentemente acampavam próximo das cidades e, durante a maior parte do
tempo parecem ter usufruído de um relacionamento pacífico com o povo da cidade;
ocasionalmente eles ficaram durante tempo suficiente para o cultivo da terra, pelo
menos de uma maneira limitada (Gn 26,12). Mas eles não se estabeleceram (exceto Ló)
permanentemente em cidades nem se integraram com a população urbana, e eles não
eram proprietários de nenhuma terra exceto de terrenos modestos comprados para
enterrar seus mortos (Gn 23; 33,19; 50,5). Em resumo, eles são descritos não como
nómades como aqueles dos tempos antigos e de hoje, mas como criadores seminômades
de ovelhas e outros pequenos ruminantes, o principal deles era o asno e que eles
limitavam suas andanças às terras colonizadas e suas fronteiras, onde a pastagem
sazonal poderia ser encontrada. As únicas referências a camelo (por exemplo, Gn 12,16;
24) parece que não passam de toques anacrónicos introduzidos para tornar as narrativas
mais vivas para os futuros ouvintes;28 nómades verdadeiros com camelos não aparecem
nas narrações do Génesis.
E assim é que deveria ser. Embora os camelos fossem conhecidos de longa data,
desde os tempos mais primitivos, e os casos isolados de sua domesticação poderia,
portanto, ter ocorrido em qualquer período (é prová-
"Apesar das objeções de alguns (por exemplo, l. P. Free, JNES, III [ 1944], pp. 187-193; recentemente, Kitchen. op.
dl., pp. 79ss), parece que não existe menção certa de camelo domesticado nos textos deste período; cf. W. G.
Lambert, BASOR, 160 (1960), p. 42ss. Sobre a domesticação de camelos, d. R.WaIz, ZDMG, 101 (1951), pp. 29-51;
ibid., 104 (1954), pp. 45-87; AIbright, YGC, pp. 62-64,156; idem,' Midianite Donkey Caravans" (H.T. Frank andW.
L. Reed eds.. Translâting and Understanding the Oíd Testament, Abingdon Press. 1970, pp. 197-205, especialmente
pp. 201ss).
OS PATRIARCAS 111
vel que os nómades tenham mantido rebanhos de camelos em estado semi-selvagem,
para lhes dar o leite, o couro e as peles), parece que a domesticação real do animal,
como animal de carga e meio de transporte, se deu entre o décimo quinto século e o
décimo terceiro, no interior da Arábia. Os nómades que peregrinavam em camelos só
aparecem na Bíblia nos dias de Gedeão (Jz do capítulo 6 ao capítulo 8). Os nómades
pastores do segundo milénio não são considerados como chegando em ondas do deserto,
incessantemente invadindo a terra habitada e incomodando os moradores. Ao contrário,
os pastores e os agricultores rurais normalmente viviam juntos como dois segmentos de
uma sociedade dimórfica; a ocupação de um complementando a do outro.29 O
movimento entre os grupos era frequente, com a mesma população muitas vezes
encontrada em ambos. Embora isso pudesse existir, o conflito era menos entre os
pastores e os aldeões do que entre ambos e a autoridade central dos senhores das
cidades. Eles eram, antes, criadores seminômades, como conhecemos da História de
Sinuhe (vigésimo século) ou dos textos de Mari — em que não há menção ao camelo, e
onde os contratos e tratados eram sempre firmados com a morte de um asno.30 De fato,
os textos de Mari provavelmente nos fornecem a analogia mais útil a respeito de como a
vida nómade dos patriarcas foi seguida.31 A aparência dos patriarcas seria muito
semelhante à desses seminômades — vestidos com roupas multicoloridas,
deslocando-se a pé com todos os seus pertences e filhos em lombo de asnos — que
vemos pintados na parede de um túmulo do décimo século em Beni-Hasan, no Egito.32
As jornadas dos patriarcas, também, concordam bastante com a situação dos
começos do segundo milénio. Há, naturalmente, alguns anacronis-mos, como, por
exemplo, a menção de Da em Génesis 14,14 (cf. Jz 18,29) e dos filisteus (Gn 21,32-34;
26) embora houvesse contatos com as terras egéias durante todo este período, os
filisteus chegaram muito mais tarde). Podia-se esperar que histórias transmitidas através
de séculos fossem enfeitadas com toques modernos, com o correr do tempo. Entretanto,
o quadro total permanece autêntico. A facilidade com que os patriarcas se deslocam da
Meso-potâmia para a Palestina e vice-versa, concorda muito bem com a situação
conhecida dos textos de Mari, que mostram que a comunicação livre, total-
^Veja especialmente N. K. Gottwaid, "Were the Eariy Israelites Pastoral Nomads?" (J. J. Jackson e M. Kessier.
eds.. Rhetorical Criticism: Essays Honor ofJames Mu/fenfcurg(Pittsburg: Pickwick Press, 1974). pp. 223-255; idem,
BARev., IV, 1978, pp. 2-7,-W. G. Cever, UH, pp. 102-120 (onde se encontra bibliografia adicional).
^Cf. F. M. Cross. Canaanite Mith and Hebrew Epic, pp. 265ss. O povo de Siquém era chamado de bene
/lamorCfilhos do asno" — i.e. da aliança -; seu deus era Baal berith ("Senhor da aliança"): d. Gn 34; Js 24,32: Jz 9,4.
^Cf. Dever, ibid., e especialmente os trabalhos de J. R. Kupper e A. Malamat lá listados.
32Cf.P^itcha^d./l/v?,placa3.
112 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
mente desimpedida de qualquer barreira, era possível em todas as partes do Crescente
Fértil. As jornadas dos patriarcas na Palestina enquadram-se perfeitamente na situação
dos Textos das Execrações, quando a terra, sob um domínio fraco ou sob nenhum
domínio do Egito, era muito pouco povoada (sobretudo nas montanhas do centro e do
norte). O quadro Beni-Hasan ilustra a facilidade com que os grupos poderiam ter-se
deslocado da Ásia para o Egito, e a História de Sinuhe mostra a facilidade de
comunicação entre o Egito e a Palestina e a Síria.
Até os detalhes das peregrinações dos patriarcas têm um sabor de autenticidade.
Com efeito, os patriarcas são pintados como vagueando na cadeia de montanhas do
centro da Palestina, da área de Siquém para o sul até Negueb, e passando pelo Negueb,
até o oriente do Jordão. Mas eles não vagueiam no norte da Palestina, no vale do Jordão,
na planície de Esdrelon, ou (salvo bem no sul) na planície costeira. Isso concorda com a
situação da Palestina sob o Médio Império, como a conhecemos pela arqueologia e
pêlos Textos das Execrações. A cadeia de montanha central era na época muito pouco
povoada;
a maior parte era coberta de florestas (cf. Js 17,18), mas com áreas próprias para
pastagens, onde os nómades poderiam fazer pastar os seus rebanhos. Os patriarcas
deslocaram-se onde os pastores podem ser esperados ter-se deslocados no segundo
milénio, mas via de regra não onde se poderia esperar encontrá-los, diga-se nos dias da
monarquia. Podemos ainda acrescentar que, tanto quanto já foi verificado, as cidades
mencionadas nas histórias patriarcais — Siquém, Betei, Jerusalém, Hebron — existiam
realmente na Idade do Bronze média.33 Nesse sentido, as histórias não são anacrónicas.
Naturalmente, nada do que foi dito constitui prova de que as narrativas patriarcais
encontram seu fundamento no início do segundo milénio. Mas a evidência, vista como
um todo, certamente mostra que elas adaptam-se bem às circunstâncias da época e
fortalece nossa convicção de que elas preservam uma antiga e persistente memória
histórica.
2. A Data dos Patriarcas
Concedendo-se tudo o que ficou acima escrito, será que a evidência nos permite
fixar a data dos patriarcas, com maior precisão? Infelizmente, não permite. O mais que
se pode dizer, embora seja muito desconcertante, é que
"Berseba, embora frequentemente mencionada, parece não ter sido construída até o período israelita. Mas deve ser
notado que as histórias não mencionam em nenhum lugar uma cidade em Berseba (exceto na citação de Gn 26,33,
explicando o último nome do lugar) ou seus habitantes, mas somente um poço e um lugar sagrado. Isso não
necessariamente quer dizer que o grande poço cavado sobre o monte seja aquele associado com os patriarcas e que as
tradições sobre ele devem ter se originado no século doze, aproximadamente, como Y.Aharoni acredita; d. BA,
XXXIX, 1976, pp. 55-76.
OS PATRIARCAS 113
os acontecimentos refletidos em Gn 12 a 50, enquadram-se muito bem no período já
descrito, isto é, mais ou menos entre o vigésimo e o décimo sétimo séculos. Porém nos
falta a evidência para fixar os patriarcas em algum século (ou séculos) em particular e
temos, além disso, a possibilidade de que as histórias dos patriarcas combinam a
memória de eventos tomados de lugares distantes no tempo.
a. Limitações da Evidência. Se tivéssemos somente a cronologia da Bíblia para nos
orientar, poderíamos supor que os patriarcas teriam vivido exa-tamente no período
sugerido. É interessante que o Arcebispo Usher tenha fixado o nascimento de Abraão
em 1996, e a descida de José ao Egito em 1728, com efeito estas datas combinam
surpreendentemente com a posição que tomamos aqui.34 Entretanto não é tão simples
assim. Além do fato de não podermos atribuir tanta precisão à cronologia da Bíblia
deste período tão remoto (se o pudéssemos, tínhamos de pôr a Criação em 4004 a.C!),
aquela cronologia não é em si mesma inteiramente nítida e precisa. Por exemplo,
enquanto o Êxodo (12,40) dá quatrocentos e trinta anos para a permanência de Israel no
Egito, os Setenta, no mesmo lugar, dão os quatrocentos e trinta anos também para a
permanência dos patriarcas na Palestina. Uma vez que a cronologia do Génesis dá
duzentos e quinze anos para esta última (cf. Gn 12,4; 21,5; 25,26; 47,9), o tempo
passado no Egito fica reduzido pela metade. Embora outras referências que parecem
reduzir a estada no Egito a somente duas ou três gerações — por exemplo, Ex 6,16-20,
onde se diz que Moisés foi neto de Caat, filho de Levi, que entrou no Egito com Jacó
(Gn 46,11) — provavelmente signifiquem que as genealogias completas não foram
preservadas.35 É claro que não se pode estabelecer as datas dos patriarcas pela morte
fazendo cálculos pela cronologia da Bíblia.
Tampouco a evidência extrabíblica soluciona a questão. Essa evidência é somente
indireta e extraída de textos que compreendem vários séculos; a partir dela é impossível
relacionar qualquer pessoa ou acontecimento em Gn 12 a 50, a qualquer pessoa ou
acontecimento conhecido de outro modo, estabelecendo assim um sincronismo.
Pensou-se durante muito tempo que o capítulo 14 do Génesis fosse uma exceção a esta
afirmativa — e ainda pode ser — mas até o momento ainda é um enigma. O esforço
para identificar Amrafel, rei de Senaar, com Hamurabi deve ser abandonado: aliás, se
fosse
"Cf. James Usher, Anmies Veteris Testamentí, Londres. 1650, pp. l. 6,14.
"Cf. D. N. Freedman, BANE, pp. 204-207, que salienta que as antigas genealogias geralmente pulam do pai para o
nome do clã:
^ 6,16-20, portanto, significa que Moisés era da família de Amram, do clã de Kohath. da tribo de Levi. Sobre esse
ponto veja também Kitchem. op. c/t.. pp. 53-56; A. Malamat, JAÓS, 88 (1968), p. 170; também AIbright, BP, p. 9.
114 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
certo, poderíamos colocar Abraão entre 1728 e 1686. Não somente não há evidência de
que Hamurabi tenha feito campanha no oeste, mas não se pode nem mesmo fazer a
equação dos nomes.36 Certamente, a história embora provavelmente tardia em sua forma
atual, parece estar ligada à tradição antiga. Ela não somente faz sentido
topograficamente, mas os nomes dos reis invasores cabem bem na nomenclatura da
Idade do Bronze. O nome "Arioc" (Arriwuk) é encontrado nos textos de Mari. "Tidal",
que é o mesmo que "Tudhalias", era o nome de diversos reis hititas, incluindo um do
décimo sétimo século. E "Chedorlaomer" é um bom tipo elamita — embora não
documentado. Além disso, a palavra usada para os partidários de Abraão (bantkim),
visivelmente de origem egípcia e não encontrada em parte alguma da Bíblia, aparece no
décimo quinto século numa carta de Tanac na Palestina e também nos Textos das
Execrações. Mas o incidente, embora pareça autêntico, não pode no momento ser
esclarecido nos termos dos eventos conhecidos da Idade do Bronze média.
É possível que os textos de Ebla esclareçam o assunto — embora qualquer
conclusão neste momento seja prematura. Foi relatado pela primeira vez que as cidades
da planície (Gn 14,2) — Sodoma, Gomorra, Admah, Zeboiim e Bela — foram todas
encontradas listadas numa tábua económica de Ebla, e na mesma ordem da Bíblia (a
qual seria prova de que estas cidades realmente existiram e mantiveram bons
relacionamentos uma com a outra nesse tempo). Mas isso tem sido questionado desde
então.37 Embora alguns estudiosos acreditem que Sodoma e Gomorra são mencionadas,
esse fato é discutido por outros, enquanto a leitura de outros nomes tem sido
questionada (e em nenhum caso eles parecem ocorrer na mesma tábua). Os nomes de
outros lugares palestinos, citados como descritos no texto, são igualmente questionados.
Qualquer luz que os textos de Ebla possam trazer no futuro, os incidentes de Génesis
14, não podem ser hoje esclarecidos a partir deles. Sabemos que Ebla manteve
relacionamento com as terras dos elamitas (Hamazi), mas não sabemos de nenhuma
intervenção sob a liderança elamita no ocidente — embora não se possa dizer que
nenhuma intervenção ocorreu, tão incompleto é o nosso conhecimento sobre esse período.
Aparentemente, qualquer evento que pudesse estar por trás dessa história deveria ter
ocorrido no terceiro milénio, pois as cidades da planície não
"Mas d. F. Cornelius, Z/W, 72 (l 960), pp. 1-7; idem, Geistesgeschíchte der Frûhzeit, II: 2, E. J. Brill, Leiden, 1967,
pp. 87ss, que confirma a identificação e relaciona o incidente com a invasão dos hicsos no Egito. AIbright liga
"Amraphel" com Ymutbal (um distrito na fronteira de Elam) e vê no incidente um ataque ao Egito, talvez relacionado
ao colapso da Décima Segunda Dinastia; et BASOR, 163, (1961). pp. 49ss; YGC, pp. 60ss.
"Sobre este parágrafo, et D. N. Freedman, BA, LXI, 1978, pp. 143-164, e adendo à p. 143; mais recentemente, cf.
BARev., V, 1979.pp.52ss.
OS PATRIARCAS 115
parecem ter existido após o final da idade do Bronze antiga.38 Ainda que seja assim, isso
não nos força a colocar Abraão no terceiro milénio — embora deva ser dito que
descobertas futuras podem nos forçar a essa exata posição. Nós devemos reconhecer a
possibilidade de que as narrativas de Génesis misturam sob os nomes de certos
indivíduos a memória de eventos que aconteceram num período de tempo mais longo do
que sugere uma leitura casual da Bíblia.
b. Os Patriarcas e a Idade do Bronze média. Mas mesmo que não possamos datar
os patriarcas com muita precisão, e mesmo que as descobertas futuras possam forçar um
novo quadro da pintura apresentada aqui, as provas atuais disponíveis sugerem que as
tradições patriarcais, na sua grande maioria, cabem nos séculos iniciais do segundo
milénio (Idade do Bronze média II). Como já mencionamos, não somente a
nomenclatura das histórias demonstra paralelos em textos daquele período; a data das
migrações dos patriarcas nos séculos após 2000 a.C., aproximadamente, está bem de
acordo com as provas arqueológicas e extrabíblicas.39 Deve ser lembrado que na última
parte do terceiro milénio as civilizações da Idade do Bronze antiga chegaram ao fim; as
cidades foram destruídas e abandonadas, resultando num período de vida
semi-sedentário (fim da Idade do Bronze antiga e Idade do Bronze média I). Foi
somente após um longo intervalo de tempo que as cidades começaram a ser
reconstruídas e a vida urbana voltou ao normal (Idade do Bronze média II). Quais foram
os agentes desta destruição e os arquitetos da recuperação subsequente, ainda está em
discussão; mas podemos presumir que eles foram os recém-chegados40. Com toda
probabilidade estes recém-chegados eram os amoritas, um povo do qual já ouvimos
falar, e que parece ter entrado na Palestina em ondas durante um longo período.41 Como
já vimos, os amoritas e grupos semelhantes pressionaram em todas as partes do
Crescente Fértil logo no início do segundo milénio. Eles foram os instrumentos da
destruição de Ur III na Mesopotâmia, e aparentemente par-
"Possivelmente elas se localizam na extremidade sul do mar Morto: cf. BARev., VI, 1980, pp. 27-36.0 grande
assentamento e 0 cemitério próximo a Bad edh-Dhra, possivelmente ligado a elas, deixaram de ser usadas na Idade do
Bronze antiga IV.
"Cf. W. G. Dever, 11H, pp. 70-120, para uma revisão magistral da evidência. Dever conclui (pp. 117-120) que se a
tradição possui siguma historicidade (e acreditamos fortemente que possui) eles se encaixam melhor na Idade do
Bronze média (especificamente "a Idade do Bronze média HA e o início do UB — 2000-1800, aproximadamente, em
sua dataçao). Para um sumario, cf. J. E. Keusman. CBQ, XXXVII, 1975, pp. 1-16.
Isso é negado por T. L.Thompson, op. tít, esp. cap. 7. É difícil acreditar que a civilização da Idade do Bronze
antiga destruiu-^ completamente somente por meio de um conflito interno. Ademais, o rompimento cultural bastante
nítido que parece ter denteado no inicio da Idade do Bronze média II deve ser lembrado; cf. Dever, ibid.
Essa é a posição de Dever (íi»d), de Vaux (EHI, l, pp. 264-266) e vários outros. O ponto de vista de P. W. Lapp
(veja Biblical "^aeologyandmstorï, NewYork and Clevelands:World Pub. Co., 1969), pp. 96-107) que os destruidores
da cultura da Idade do ronze média foram invasores vindos do norte (da Ásia Central) tem sido mais aceita.
ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
116
ticiparam durante o período de perturbação no Egito, conhecido como o Primeiro
Intermediário. Os reis de Ur e os faraós do Egito tomaram medidas defensivas contra
eles quase ao mesmo tempo (no início do século vinte);
Síria e Palestina indiscutivelmente receberam parte deste povo. É razoável supor que
entre eles havia vários elementos cujos antepassados um dia seriam os membros do povo
de Israel.
O mundo das histórias patriarcais é de maneira geral aquele da Idade do Bronze
média. Este era um tempo em que a população da Alta Mesopotâmia era
predominantemente amorita, com um aumento da população ocasionado pela mistura de
humanos, quando não havia grandes impérios e a livre comunicação era possível em
todas as direções (como nos textos de Mari). E um quadro que se assemelha, de certa
maneira, com o que se sabe do período seguinte (Idade do Bronze antiga), pois então,
como veremos, a Alta Mesopotâmia foi a primeira sede do reinado de Mitanni, com a
Palestina e a Síria fazendo parte do Império Egípcio e, mais tarde, o norte da Síria
passou para o controle dos hititas, com a Alta Mesopotâmia sendo o pomo de discórdia
entre eles e a ascendente Assíria.
A Palestina das narrativas de Génesis parece também ser aquela da Idade do Bronze
média. Os patriarcas vagavam na Transjordânia, nas montanhas centrais e no Negueb.
Além dos reis da planície do Jordão (Gn 14), eles não encontraram reis das cidades
exceto Melquisedec de Jerusalém e o rei de Gerar na planície costeira (Gn 20; 26).
Mesmo Hebron (Gn 23) e Siquém (Gn 33,18-20; 34) pareciam estar nas mãos de
confederações tribais. Isso cabe bem nos Textos das Execrações (século dezenove,
aproximadamente), quando os grupos tribais foram gradualmente ocupando o interior
pouco povoado da Palestina e começando a se estabelecer. Isso não se enquadra bem na
fase tardia da Idade do Bronze, quando a Palestina — como conhecemos dos arquivos
egípcios e da Bíblia — era organizada no sistema feudal de cidades-estados e era parte
do império egípcio. Os patriarcas nunca encontraram egípcios na Palestina; na verdade
não há nenhum indício de governo egípcio naquela área. Mesmo no turbulento período
de Amarna (século quatorze) não se enquadra bem. Então, como veremos, as dinastias
locais, auxiliadas por elementos subversivos chamados "Apiru", tentavam alcançar seus
interesses à custa de seus vizinhos ou ainda se livrar do jugo do faraó de uma vez por
todas. Era uma época de transtorno contínuo. Mas existe pouca evidência deste
transtorno nas narrativas do Génesis. Nem os reis das cidades nem seus mantenedores
estão em evidência. O quadro não é o retrato de uma província em transtorno; com raras
exceções os patriarcas se movem em terras de paz aparente.
c. O final da Idade Patriarcal. O que ficou dito acima não significa que podemos
afirmar dogmaticamente que nenhum dos acontecimentos relatados nos capítulos de 12 a
50 do Génesis são posteriores ao décimo sexto século. Alguns talvez o sejam. Por
exemplo, o capítulo 34, que reflete uma fase primitiva da ocupação israelita da Palestina,
quando as tribos de Simeão e de Levi fizeram uma conquista violenta da área de Siquém
e depois foram expulsos e dispersos (Gn 49,5-7) pode referir-se a acontecimentos da
idade do Bronze recente. É possível que o capítulo 38, que trata de negócios internos de
Judá, também pertença a uma fase primitiva de ocupação, quando os elementos daquela
tribo estavam infiltrando-se no sul da Palestina. Além de tudo, as repetidas menções dos
arameus nas histórias de Labão-Jacó podem, se não anacronicamente (veja abaixo),
sugerir que essas histórias refletem uma subsequente migração dos elementos dos
antepassados de Israel a partir do norte na Idade do Bronze antiga, pois arameus não são
claramente atestados nos textos assírios até por volta do século doze (embora certamente
existisse mais cedo). Os movimentos que levaram os antepassados de Israel à Palestina
indiscutivelmente representaram um longo e contínuo processo que durou vários séculos.
Não podemos tampouco dizer com certeza quando Israel desceu para o Egito. O
faraó que tratou bem a José e o faraó que "não conheceu José" não são identificados. E
uma vez que a própria Bíblia não é coerente sobre a duração da permanência no Egito,
não podemos conjeturar a partir da data provável do êxodo para resolver o assunto.
Embora seja tentador considerar o faraó da época de José como um antigo rei hicso —
que sendo semita tratava bem outro semita — e considerar o faraó que "não conheceu
José" entre os soberanos do Império, não há nenhuma prova disso.
Não devemos, igualmente, esquecer-nos de que os semitas tinham sempre acesso ao
Egito em todos os períodos, como tanto a Bíblia como as narrativas egípcias indicam.
Pode ser que querer saber quando Israel desceu para o Egito seja levantar uma questão
indevidamente. Com efeito, ainda não existia o povo de Israel. A simples narrativa
bíblica oculta acontecimentos de tanta complexidade. Não precisamos, portanto, supor
que os pais de todos os que saíram no êxodo tivessem entrado no Egito ao mesmo tempo.
A própria inconsistência da tradição bíblica é um reflexo disso. É, portanto, impossível
fixar uma data exata para a entrada de Israel no Egito e assim fixar 0 fim do período
patriarcal. Mas a maioria das narrativas patriarcais parece ^ encaixar melhor na Idade do
Bronze média (algumas até mais cedo; Gn 14?), algumas delas aparentemente nos
remetendo à Idade do Bronze antiga. Podemos acreditar que, pelo último período, a
maioria dos componentes do
OS PATRIARCAS 117
ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
118
que mais tarde veio a ser Israel foram encontrados na Palestina, a maioria dos quais
assentados em suas áreas tribais. E a partir dessas áreas, alguns chegaram até o Egito.
C. OS ANTEPASSADOS HEBREUS E A HISTÓRIA
1. A migração dos Patriarcas
Concedendo-se, portanto, que as narrativas patriarcais têm aparência de mais
genuína autenticidade, o que é que poderemos dizer mais? Primeiramente, pela
historicidade da tradição os antepassados de Israel vieram originalmente da Alta
Mesopotâmia para a população seminômade com cuja área eles sentiam uma íntima
afinidade. Isso não se pode absolutamente negar.
a. A tradição bíblica. A tradição bíblica é unânime sobre este ponto. Dois dos
documentos mencionam expressamente Harã como o ponto de partida da jornada de
Abraão (Gn 11,32; 12,5 [P]) e, depois, como a pátria de Labão, parente de Abraão (por
exemplo, Gn 27,43; 28,10; 29,4 [J]). Em outra parte Labão é colocado em Padã-Arã
(Gn 25,20; 28,1-7; 31,18 [P]) — outro nome para a mesma área, quando não lugar
idêntico42 — e, ainda em outra parte (Gn 24,10 [J]), na cidade de Nacor (Nakhur, no
vale Balikh, perto de Harã) em Aram-naharaim (Mesopotâmia). Somente o material
atribuído a E não faz nenhuma menção especial à área de Harã — provavelmente um
acidente de sua natureza fragmentária — mas ele também dá conta (Gn 31,21) de que a
pátria de Labão era além do Eufrates. A tradição é também confirmada por Js 24,2ss,
passagem esta geralmente atribuída a E ou D, porém muito mais antiga do que ambas.
Alguns afirmaram, com certeza,43 que a pátria de Labão, na forma original da
tradição, era nas fronteiras de Galaad (o local de Gn 31,43-55) e que depois ela foi
transferida para a Síria oriental — onde (cf. História de Sinuhe) parece ter sido a terra
de Qedem (cf. Gn 29,1, "os filhos do oriente" [Benê Qedem]) — e somente mais tarde,
com a elevação de Harã para um lugar de proeminência, como centro de uma caravana
araméia, para a Mesopotâmia.
"Padâ-Aram pode significar "o caminho (Akk. paddanu) de Aram": cf. R. T. 0'callaghan, Aram Naharain,
Pontifício Instituto Bíblico, Roma, 1948, p. 96. Harã (Acad.: harrânu) também significa "o caminho" (cf. E.
Dhorme, Recueil Édouard Dhorme, Imprimerie Nationale, Paris. 1951, p. 218). Outros, contudo, sugerem "a planície
(Aram.: paddanã) de Aram" (d. Os 12,12); cf.AIbright. FSAC, p. 237; R. deVaux, RB, LV (1948), p. 323.
"Cf. Noth, Pentateuchal Traditions, pp. 110,199ss: também Hl, pp. 83ss. Mas nos seus últimos escritos Noth já
estava preparado para conceder a semelhança da origem da mesopotâmia dos antepassados de Israel; cf. "Die
Ursprûnge dês alten Israel im Lichte neuer Quellen", Arbeitsgemeinschaft fûr Forschung dês Landes
Nordrthein-Westfalen, Heft 94 (1961), especialmente pp. 31-33.
OS PATRIARCAS 119
Mas, embora os antepassados do Israel posterior tenham sem dúvida vindo originalmente de
muitos lugares diferentes, não há uma explicação muito convincente de uma tradição tão
forte. Além disso, pode-se objetar se as passagens em causa permitem levar a tais conclusões.
Tanto Labão como o Benê Qedem eram povos não-sedentários, que poderiam ter-se estendido
para muito longe — como sabemos que fizeram os benjamitas ("povos do sul") dos textos de
Mari. A tradição que põe Labão perto de Galaad não é nem em si mesma difícil de se aceitar
nem contradiz a que põe as origens de Israel na Mesopotâmia, e também é antiga e unânime.
b. A tradição à luz da evidência. Uma tradição tão unânime não deveria ser posta à parte
sem motivo forte, e em vista da evidência seria subjetivo agir deste modo. Já mencionamos
muita coisa neste sentido e não precisamos repeti-lo: por exemplo, a evidência proveniente de
toda a Mesopotâmia do norte de que havia ali uma população afim aos hebreus na primeira
metade do segundo milénio; ou o fato de que havia uma lei consuetudinária patriarcal
especificamente entre a população da mesma área aproximadamente e mais ou menos no
mesmo tempo. E muito mais ainda. Estes fatos são históricos e como tais devem ser
reconhecidos.
Todavia, pode-se ainda acrescentar mais a estas linhas de evidência, persuasivas em si
mesmas. Primeiramente, o fenómeno da profecia como o vemos na Bíblia encontra os
paralelos mais semelhantes nos textos de Mari. Naturalmente não podemos entrar aqui em
discussões pormenorizadas da matéria.44 Mas em vista dos numerosos paralelos entre os
costumes e instituições dos povos que encontramos nestes textos e os dos antepassados de
Israel, devemos pressupor algumas ligações entre eles. Embora a profecia tal como existia em
Israel fosse um fenómeno único no mundo antigo, e tipicamente israelita, os textos de Mari
mostram-nos alguma coisa de sua pré-história. Uma vez que a instituição da profecia estava
bem estabelecida em Israel, pelo menos no período dos Juizes (Débora, Samuel etc.), e parece
ter sido ela uma característica de sua vida religiosa desde o começo, estes paralelos com os
textos de Mari se explicam muito melhor supondo-se que a profecia foi levada a Israel pêlos
antepassados que vieram de um meio cultural semelhante.
"O levantamento mais completo do material é de F. Ellermeier, Pmphetie in Mari und Israel, Verlag Erwin Jungfer,
Herzberg am Harz, 1968. Para uma excelente orientação, d. H. B. Huffmon. Mag. Dei, cap. 8. Outras discussões à luz dos
textos mais recentemente publicados incluem: A. Malamat, "Prophetie Revelations New Documents from Mari and the
Bible", VT, Suppl, vol. XV (1966), pp. 207-227; J. G. Heintz, "Oracles prophétiques et "guerre sainte" selon lês archives
royales de Mari et 1'AncientTestament". ^ Suppl.. vol. XVII (1969), pp. 112-138; W. L. Moran, "New Evidence from Mari
on the History of prophecy", Bíblica, 50 (1969), PP. 15-56; J. F. Ross, "Prophecy Hamath, Israel, and Mari", HTR, LXIII
(1970), pp. 1-28.
120 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
Além disso, existe ainda o fato bem conhecido de que a lei israelita como a conhecemos
do Código da Aliança (Ex 21-23), tem paralelos extremamente semelhantes à tradição legal
mesopotâmica, especialmente exemplificados nos códigos de Eshnunna e de Hamurabi. Não
temos nenhuma prova de que existisse uma tradição legal semelhante entre os canaanitas —
embora devemos dizer que até então não foi encontrado nenhum código de leis nem na
Palestina nem na Síria. Concorda-se geralmente, hoje em dia, que o Código da Aliança reflete
a prática legal de Israel no período mais remoto de sua história como um povo, quando Israel
não tinha nenhum contato de espécie alguma com a Mesopotâmia. Mas embora esta tradição
legal seja tão antiga e por mais que ela tenha sido adaptada às condições de Canaã, não se
pode afirmar que seja de origem canaanita. A suposição mais razoável é que ela foi trazida
para a Palestina por grupos que migraram durante o segundo milénio de terras em que se
conhecia a tradição da jurisprudência mesopotâmica.
O mesmo se pode dizer das narrações da Criação e do Dilúvio (Gn 2; 6-9). Como é
sabido estas histórias mostram uma semelhança surpreendente com histórias semelhantes da
Mesopotâmia. Mas quanto o saibamos, apresentam muito poucas semelhanças — e mesmo
assim muito superficiais — com a literatura de Canaã ou do Egito. As histórias do Jardim do
Éden, da Torre de Babel, assim como outras encontradas no Génesis, do capítulo l ao capítulo
11, têm igualmente um substrato mesopotâmico.45 E uma vez que estas histórias eram
conhecidas entre os hebreus, de alguma forma pelo menos, já no décimo século (quando se
data geralmente J); uma vez que entre o seu estabelecimento na Palestina e a elevação da
monarquia, Israel não teve nenhum contato com a Mesopotâmia; uma vez que não há
nenhuma prova pelo menos de que a versão babilónica da história do Dilúvio fosse conhecida
na Palestina nos tempos pré-israelitas (um fragmento do poema do herói mítico Gilgamesh foi
encontrado em Meguido no décimo quarto século), é lógico supor que as tradições que
remontam a uma época anterior à história primeva do Génesis foram trazidas da Mesopotâmia
pêlos grupos migrantes, na primeira metade do segundo milénio. Embora não tenhamos
nenhum meio de provar, pode-se perfeitamente supor que a introdução dessas tradições foi
feita primitivamente por aqueles mesmos elementos "amoritas" entre os quais se encontravam
os antepassados de Israel. De qualquer modo, é impossível conseguir uma data mais antiga.
"Cf.AIbright, YGC, pp. 79-87; idem, BA XXXVI (1973), pp. 22-26; Wright, BAR, pp. 44ss. Para uma descrição do afresco
de Man com características que lembram o Jardim do Éden (quatro rios cósmicos correndo de vasos seguros por deuses, duas
árvores, querubim), veja a propósito A. Parrot, AOTS, p. 139.
OS PATRIARCAS 121
Evidência, tal como a precedente, tanto tem múltiplas características quanto é instigante.
Embora obviamente não necessitemos assumir que todos os ancestrais do Israel antigo vieram
de um mesmo lugar, somos forçados a concluir que no mínimo importantes elementos entre
eles foram, de fato, de origem mesopotâmica. A tradição bíblica de que os patriarcas
migraram daquela área deve, portanto, ser vista em sua historicidade essencial.
c. Ur dos caldeus. A tradição seguinte (Gn 11,28.31; 15,7) de que Tare, pai de Abraão,
tenha migrado de Ur dos caldeus para Harã é menos certa. Entretanto, não há nada
intrinsecamente improvável sobre o assunto. Ur e Harã estavam unidas por laços de comércio
e religião, porque ambas estas cidades eram centros do culto da deusa Lua. Não obstante o
fato de serem desconhecidos entre os antepassados hebreus (por exemplo. Tare, Labão, Sara,
Melca) nomes associados com aquele culto, seria temerário negar que a tradição se
fundamente em circunstâncias históricas.46 Não é impossível que certos clãs semíticos do
noroeste, tendo-se infiltrado no sul da Mesopotâmia, tenham depois — talvez nos dias
conturbados depois da queda de Ur III — migrado para o norte, para Harã. Apesar de ser
verdade que Babilónia, quanto o saibamos, só foi chamada Caidéia no décimo primeiro
século, quando os caldeus — povo arameu — apareceram lá, pode-se considerar isso como
um anacronismo natural.
Entretanto, deve-se ter muita cautela. Não somente os Setenta não fazem menção a Ur,
dizendo simplesmente "a terra dos caldeus", mas outras passagens (Gn 24,4.7) parecem
colocar o lugar do nascimento de Abraão na Alta Mesopotâmia. Embora a leitura dos Setenta
possa ser o resultado de uma corrupção textual,47 é também possível que a pátria original dos
antepassados hebreus tenha sido um lugar qualquer mais ao norte.48 Não podemos ter certeza
disso. De qualquer modo, as tradições patriarcais mostram pouca evidência de influência do
sul da Mesopotâmia.
d. Os antepassados hebreus e os arameus. Os antepassados de Israel, embora fossem
predominantemente de um tronco semítico do noroeste, eram sem a menor dúvida uma
mistura de muitas raças. A consciência deste fato se reflete na própria Bíblia, que enfatiza o
parentesco de Israel não somente
"'Cf. E. Dhorme, op. dl., pp. 205-245; mais recentemente, R. deVaux, EHI, l, pp. 187-192; AIbright, BASOR, 163 (1961),
pp. 44-
A explicação de AIbright da divergência textual (BP, p. 97) é plausível.
C. H. Gordon tem argumentado que a Ur de Abraão não era um famoso centro urbano no sul; cf. BARev., Ill, 1977, pp.
20ss., 52. Um texto de Ebla menciona Ur nas proximidades de Harã; cf. P. C. Maloney, Barev., IV, 1978. p 8. Isso,
naturalmente, aguarda confirmações posteriores.
46.
ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
122
com Moab, Amon e Edom (Gn 19,30-38; 36), mas também (Gn 25,1-5.12-18) com
numerosas tribos árabes, incluindo madianitas. Entretanto, os hebreus tinham uma convicção
muito arraigada de seu parentesco com os arameus. Não somente a pátria de seus parentes
mesopotâmicos está localizada em Aram-naharaim ou Padã-Aram, mas o próprio Labão é
chamado repetidas vezes de arameu (Gn 25,20; 28,1-7 [P]; 31,20.24 [JE]). Este parentesco é
explicado diversamente nas genealogias. Em Gn 10,21-31 os arameus são descendentes de
Sem através de uma linha paralela à de Heber, antepassado tradicional dos hebreus, enquanto
em Gn 22,20-24 os arameus e os caldeus são a progénie de Nacor, irmão de Abraão. Mas a
tradição está fortemente estabelecida. O israelita primitivo tinha uma cerimónia religiosa que
começava com as palavras: "Um arameu errante era meu progenitor" (Dt 26,5).
Uma tradição arraigada tão profundamente não podia ser desprovida de fundamento.
Encontramos realmente um povo chamado arameu nos textos do décimo segundo século.
Estes textos afirmam que reis assírios combatiam os arameus em diversas partes do vale do
Eufrates e no deserto da Síria. Eles eram encontrados em toda a Síria e Alta Mesopotâmia,
onde sua língua com uma rapidez surpreendente deslocou línguas faladas anteriormente naquelas
áreas (eventualmente, séculos mais tarde, ela tornou-se a "língua geral" do sudoeste da
Ásia). Mas até hoje não temos uma evidência clara de que os arameus estivessem presente na
Mesopotâmia na Idade patriarcal49. E verdade que o nome de "Aram" foi encontrado nos
textos de Mari (décimo oitavo século), assim como em outros textos do ano 2000 a.C.,
aproximadamente, ou mais antigos ainda. Mas é questionável que estas ocorrências tenham
alguma coisa que ver com o povo arameu. O mesmo se diga de Ahiamu, com quem os
arameus são às vezes identificados e que aparece frequentemente nos textos dos séculos
seguintes. O fato de Ahiamu ocorrer nos textos de Mari como nome próprio não é
absolutamente suficiente para provar que os arameus ou Ahiamu estavam presentes naquela
área na idade patriarcal. Por outro lado, não é provável que o aparecimento dos arameus no
fim do segundo milénio representasse uma recente irrupção de nómades do deserto, pois os
primitivos arameus eram provavelmente elementos seminômades de origem mista, já há
muito presentes no deserto da Síria ao longo das fronteiras das áreas povoadas. A língua
aramaica provavelmente se originou de um dialeto que evoluiu localmente no leste da Síria
ou noroeste da Mesopotâmia e foi estendendo-se gradualmente sobre áreas cada vez mais
extensas, à medi-
"Possivelmente há menção dos arameus desde o décimo quarto século, mas aparentemente não além disso. Cf. R. deVaux,
EHI, l, pp. 200-209, para uma judiciosa revisão da evidência; também A. Malamat, POTT, pp. 134-401;W. F.AIbright, CAH,
II: 23,1966, pp.46-53.
OS PATRIARCAS 123
da que os vários povos do Crescente Fértil e ao longo de suas fronteiras se confederavam com
os que a falavam, ou, de uma maneira ou de outra, estavam sob a sua influência. Entre os
povos que adotaram a língua aramaica — e assim "se tornaram" arameus — estavam aqueles
elementos da população "amorita" mais antiga, que viviam no Alto Eufrates e seus
tributários. Este processo foi sem dúvida muito fácil em virtude da relativa semelhança do
aramaico com a sua língua. Como já dissemos, "amorita" é uma palavra acádia que significa
"ocidental". Essa palavra foi usada como designação para os vários povos semitas do
noroeste da Alta Mesopotâmia e Síria na Idade patriarcal e antes dela. Ela deve, portanto,
ter-se estendido àqueles povos da área cujos descendentes vieram depois a falar aramaico,
assim como aos antepassados de Israel. Por outras palavras, os antepassados de Israel e os dos
arameus tardios eram do mesmo tronco étnico e linguístico. Não era, portanto, sem razão que
Israel podia lembrar a sua origem na "planície de Aram" e falar de seu progenitor como "um
arameu errante".
Foi, portanto, deste "background" — que alguns ousaram chamar "proto-arameu"50 —
que provieram os antepassados de Israel. Por razões ainda desconhecidas, eles se separaram,
provavelmente no segundo milénio, e migraram para a Palestina com outros povos dos quais
nada sabemos, para dar àquela terra uma nova infusão de população. Talvez o fato de a Bíblia
nos falar de contatos contínuos com a Mesopotâmia e de novas influências daí (as histórias de
Isaac e Jacó) nos poderia levar a supor que os antepassados de Israel entraram na Palestina
em várias levas num determinado período (possivelmente em direção à Idade do Bronze
antiga). Mas os detalhes fogem ao nosso controle. A língua dos patriarcas foi sem dúvida uma
forma do semítico do noroeste, não muito diferente da língua falada em Mari. Mas como os
vínculos com a pátria se enfraqueceram, eles assimilaram a língua canaanita, da qual o
hebraico não passa de um dialeto. O mesmo aconteceu com seus parentes na Mesopotâmia,
que acabaram adotando o aramaico. Na Palestina, os antepassados de Israel estiveram em
contato com outros grupos de origem semelhante, com os quais eles sentiam que tinham
parentesco. Contraíram casamento entre si, dividiram-se e proliferaram de uma maneira
muito mais complexa do que indica a narrativa bíblica, embora esta narrativa (por exemplo,
as histórias de Ló, Ismael e Esaú) seja um reflexo Perfeito dessa complexidade.
R w., Noth, Díe Ursprûnge dês alten fsrae/(veja nota 43), especialmente pp. 29-31; R. de Vaux. EHI, l, pp. 207-209. Mas
deve-ter muita cautela. Discute-se como deveria ser classificada a língua de Mari com relação ao aramaico. canaanita etc.
Veja a Propósito W. L. Moram, BANE. pp. 56ss e as referências lá encontradas.
124 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
2. Os patriarcas como figuras históricas
A evidência que aduzimos até agora nos dá todo o direito de afirmar que as narrativas
patriarcais estão firmemente fundamentadas na história. Mas devemos parar aqui? Devemos
considerar os patriarcas apenas como um reflexo de movimentos clânicos impessoais? De
modo nenhum! Embora não possamos reconstruir as vidas de Abraão, Isaac eJacó, podemos
confian-temente acreditar que eles foram indivíduos históricos reais.
a. Chefes de clãs seminômades. A declaração acima poderia ser largamente aceita hoje.
As tentativas antigas de não achar nos patriarcas mais que a criação livre da lenda,
antepassados epônimos de clãs, ou figuras atenuadas de deuses, já foram abandonadas e de tal
forma que não merecem hoje a mínima discussão. O sabor de autenticidade das histórias nos
impede que consideremos os patriarcas como lendários, e a descrição deles, que nos é
apresentada, não tem nada de mitológico. Há, naturalmente, motivos folclóricos nas histórias.
Mas tais motivos pertencem ao desenvolvimento da narrativa, não às suas figuras centrais,
que nos são descritas da maneira mais realista.
Esses motivos apenas vêm ilustrar a tendência de toda literatura antiga de acomodar-se a
formas convencionais. A tentativa de explicar os patriarcas como antepassados epônimos que
eram adorados como deuses se apoiava num enorme equívoco da evidência: por exemplo, a
falsa impressão de que Tare aparece nos textos de Rãs Shamra como a deusa Lua51 ou a
explicação errónea de nomes como Jacó (Ya'qub-el) como "Jacó é Deus"52 (realmente
significa "[Deus] o proteja"). Mas o esforço para reduzir os patriarcas a meros epônimos
impessoais cai por terra sobretudo diante da evidência que será aduzida mais abaixo sobre a
natureza de sua religião. Essa evidência nos compele a considerá-los como indivíduos
históricos.
Portanto, como dissemos acima, os patriarcas não foram simples indivíduos particulares,
mas chefes de clãs consideráveis. As meras narrativas nos dão a entender complexos
movimentos de clã. Nessas narrativas o indivíduo se mistura com o grupo, e suas açôes
refletem as ações do grupo. Mas os patriarcas não podem ser apagados em epônimos. Afinal
de contas, a Palestina, no começo do segundo milénio, estava cheia de clãs seminômades,
cada um dos quais, com toda a certeza, era chefiado por um indivíduo real,
"Para referências H. H. Rowley, The Servant of the Lota (veja nota 17). pp. 307-309.
"Oesterleye Robinson, HistoryofIsrael, Clarendon Press, Oxford, 1932, vol. l, pp. 52ss, 91;A.T. Olmstead, History
ofPalestino and Syria, Charles Scribner's Sons, 1931. p. 106.
OS PATRIARCAS 125
embora não lhe conheçamos o nome. Se os patriarcas representam tais grupos, como há
muitas razões para o admitirmos, é capcioso negar que os líderes desses grupos também eram
pessoas reais, isto é, que Abraão, Isaac e Jacó eram chefes de clãs que realmente viveram
entre os séculos vinte e dezessete ou no segundo milénio a.C.
Infelizmente, e é muito lamentável que assim seja, isso é tudo o que a evidência externa
nos permite afirmar. Embora a narrativa da Bíblia tenha a maior autenticidade, não possuímos
nenhum meio de controlar os seus detalhes. Por isso é que fazemos muito bem afirmando que
não conhecemos nada a respeito de Abraão, Isaac e Jacó além do que deles nos diz a Bíblia.
Pode-se pôr em dúvida a narrativa bíblica ou parte dela, ou dispor os acontecimentos ao sabor
de cada um, mas não se deve esquecer que quem proceder deste modo estará indo mais além
do que a evidência objetiva. Podemos estar inteiramente certos de que os acontecimentos reais
foram muitíssimo mais complexos do que a Bíblia indica. Basta notar que se trata de um
confuso processo de confederação, proliferação e divisão de numerosos grupos de clãs. Mas a
natureza do material é tal, e são tão limitados os nossos conhecimentos a respeito, que tentar
uma reconstrução deste género seria uma especulação inútil. Muito menos ainda um método
seguro e imparcial nos permitiria, na ausência de uma evidência objetiva, traçar
hipoteticamente a história das tradições e, nesta base, passar a julgá-las. A narrativa da Bíblia
reflete com toda a precisão os tempos aos quais se refere. Entretanto, não podemos acrescentar
uma palavra ao que ela nos diz sobre a vida dos patriarcas.
b. 'Apiru (Hapiru). A Bíblia nos pinta os patriarcas como homens pacíficos, dispostos
(Gn 26) a se deslocarem para grandes distâncias a fim de evitar conflitos ou atritos com seus
vizinhos. Naturalmente, isso acontecia porque eles não eram nem numerosos, nem
suficientemente fortes para enfrentar a inimizade de chefes mais poderosos (Gn 34,30).
Ocasionalmente, eles aparecem recorrendo à violência. É o caso do traiçoeiro assalto de
Simeão e Levi a Siquém (Gn 34), ou a tradição (Gn 48,22) de que o próprio Jacó se apoderou
de terras nas proximidades de Siquém pela força das armas.53 Mas o exemplo clássico está no
capítulo 14 do Génesis, em que Abraão, com 318 homens, persegue os reis invasores para
resgatar Ló e sua família. É interessante notar que só aqui (no versículo 13) Abraão é
chamado "hebreu". Além disso, deve-^ também ter em vista que somente aqui e na história de
José o termo é usado SITI toda a narrativa do Génesis. Devemos, também, notar que, embora
esteja-
Gênesis 33.19 afirma que ele o comprou. Embora ambos os versos sejam geralmente atribuídos a E, parecem referir-se à
"'Kma terra da qual se trata no capítulo 48, versículo 22; et Noth, Pentateuchal Traditions, p. 83.
126 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
mós acostumados a nos referir aos israelitas (e aos judeus de hoje) como hebreus eles não se
chamavam normalmente assim, mas se designavam como Benê Yisra'el (isto é, israelitas).
Com efeito, o nome "hebreu" virtualmente nunca aparece no Antigo Testamento, salvo nas
narrativas do período primitivo,54 e então é posto sobretudo na boca de estrangeiros falando
de israelitas (por exemplo, Gn 39,14,17; Ex 2,6; ISm 4,6.9), ou na boca de um israelita que
deseje identificar-se com um estrangeiro (por exemplo, Gn 40,15; Ex 3,18; 5,3). Depois das
guerras contra os filisteus, o termo caiu em completo desuso.
Isso levanta a questão da relação dos hebreus com grupos conhecidos como 'Apiru,
Hapiru, ou Habiru,55 e atestado nos textos num período que coincide com a incidência do
"hebreu" na Bíblia. Este problema já foi discutido à saciedade.56 Os vocábulos "hebreu" ('ibri)
— visivelmente uma derivação popular do nome do antepassado Heber (Gn 11,14-17) — e "
'apiru" (hapiru) apresentam uma semelhança sedutora. Embora conceituados estudiosos sábios
afirmem que estes nomes não podem ser identificados etimologicamente,57 parece pelo menos
possível que haja alguma ligação entre eles. Entretanto, não podemos, mesmo assim,
simplesmente igualar "hebreu" e " 'apiru". O termo 'apiru é encontrado com tanta frequência
que não é lícito estabelecer tal igualdade. Na Mesopotâmia, por exemplo, os 'apiru estão em
evidência durante os períodos de Ur III, de I Babilónia, e ainda depois; nos textos de Nuzi
(décimo quinto século) eles desempenham um papel importante. E documentos de Mari
(décimo oitavo século) e Alalakh (décimo sétimo e décimo quinto séculos) atestam a sua
presença na Alta Mesopotâmia durante toda a idade patriarcal. Na Anatólia, os textos
capadócios (décimo nono século) falam deles, assim como os textos de Boghazkoy (décimo
quarto século). Eles são igualmente mencionados nos textos Rãs Shamra (décimo quarto
século). Os documentos egípcios do período imperial (do décimo quinto século ao décimo
segundo) referem-se a eles, como inimigos e rebeldes na Ásia e como povos escravos no
Egito. As cartas de Amarna (décimo quarto século), nas quais eles aparecem na Palestina e
áreas circunvizinhas como perturbadores da paz, são os melhores testemunhos deles. É claro
que um povo que aparece em todo o oeste da Ásia do fim
"Somente Dt 15,12; Jr 34,9.14, que se referem a uma lei antiga (Ex 21,2); e Jonas 1,9, que é arcaizante.
"Segundo a evidência de Rãs Shamra, o primeiro parece ser a forma do nome na língua semítica do Oeste; Hapiru,
pronunciado antes como Habiru, é a escrita cuneiforme. O ideograma, SA.GAZ, que ocorre frequentemente, é usado um pelo
outro.
"Veja especialmente M. Greenberg, 7'Ae Hab/piru, American Oriental Society, 1955, e J. Bottéro, Lê problème dês Habiru
à Ia 4éme reencontre assyríologique Internationale, Cahíers de Ia Sodété Asiatique, XII (1954), ambos esses trabalhos são
sumários excelentes da discussão até o tempo em que foram escritos. A discussão continuou: cf. R. de Vaux, te problème dês
Hapiru après quinze annés, JNES, XXVII (1968), pp. 221-228. Nesta obra o autor apresenta a literatura mais recente sobre o
assunto. Veja H. Cazelles, P07T.pp.l-28.
"Greenberg, op. c/t., pp. 3-12, para uma história da discussão.
OS PATRIARCAS 127
do terceiro milénio até o décimo primeiro século aproximadamente, não pode nem
ligeiramente ser identificado como os antepassados de Israel!
O termo " 'apiru/hapiru", qualquer que seja a sua derivação (e isso é uma questão
pendente),58 parece que se refere originalmente não a uma unidade étnica, mas a um estrato da
sociedade. Isso se pode concluir não somente de sua vasta distribuição geográfica, mas
também do fato de que seus nomes, quando são conhecidos, não pertencem a nenhuma
unidade linguística e variam, sob este aspecto, de região para região. Homens de várias raças
e de várias línguas poderiam ser 'apiru. O termo denotava claramente uma classe de pessoas
sem cidadania, que viviam à margem da estrutura social existente, sem raízes ou lugar fixo.
Levando às vezes uma existência seminômade, vivendo em paz ou fazendo incursões, quando
se ofereceu a ocasião, se estabeleceram nas cidades. Em tempo de guerra, eles poderiam servir
na guerra por soldo (como nas cartas de Amarna), como tropas irregulares, por qualquer
vantagem que pudessem alcançar, ou mesmo formar unidades regulares no exército. Ou
poderiam também, levados pela necessidade, dispor de si como assalariados, ou até mesmo
vender-se como escravos (como em Nuzi). No Egito foram recrutados em grande número para
trabalhar nos vários projetos reais. Ocasionalmente, contudo, alguns deles — como José — se
elevaram a altas posições.59
Em vista disso, embora não possamos identificar os antepassados hebreus com os 'apiru
(especificamente, não o podemos com os de Amarna), é legítimo pensar que eles pertenciam a
esta classe. Assim é que os outros os viam. Assim é que eles se identificavam consigo
mesmos, quando a ocasião se apresentava. Embora não os possamos distinguir, dificilmente
se pode duvidar, como veremos mais abaixo, que entre os 'apiru que viviam em escravidão no
Egito, sob Ramsés II, não se encontrassem filhos de Israel. É também interessante que os
'apiru, ao concluírem um pacto ou um tratado, às vezes juravam "pêlos deuses de 'apiru"60 —
uma expressão que é um paralelo perfeito com a expressão "o Deus dos hebreus" encontrada
em Ex 3,18; 5,3; 7,16.
c. Os Patriarcas e a história: Sumário. Concluímos, portanto, que os patriarcas eram
figuras históricas. Eles faziam parte da migração de clãs seminômades que levaram nova
população à Palestina nos primeiros séculos
"AIbright, B/150/Ï, 163 (1961), pp. 36-54; CAH, 11:20 (1966), pp. 14-20, como outros antes dele deriva o termo da raiz,
'pr, e vê a sua significação original como "os empoeirados"; justifica a sua tese afirmando que os hebreus ('Apiru) eram,
originalmente, "ravaneiros de burros, os quais, quando não podiam mais viver do seu comércio, se voltavam para outras
ocupações (incluindo a Pilhagem). Ele acredita que Abraão era um comerciante de caravanas.
"Veja os textos babilónicos do século doze e do século onze: cf. Greenberg, op. cit.. pp. 53ss. Muito frequentes nos textos
hititas: cf. Greenberg, op. cit., pp. 51ss. Há também uma referência enigmática ao "deus Hapiru" ""ma lista assíria (e talvez
em outra parte): para referências cf.AIbright, BASOR, 81 (1941), p. 20; Greenberg, op. cit., p. 55, para Werências.
128 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
do segundo milénio a.C. Eram clãs iguais aos mencionados nos Textos das Execrações e em
outros lugares. Muitos destes clãs estabeleceram-se onde puderam encontrar terra e
organizaram-se em cidades-estados, segundo um padrão feudal. É provável que parte da
aristocracia hicsa fosse recrutada da sua classe patrícia. Mas esse movimento de povos foi
indiscutivelmente um movimento complexo que continuou durante um período muito longo.
Esse movimento trouxe outros que não encontraram nenhum lugar na estrutura das
cidades-estados emergentes. A maioria destes sem dúvida continuou por gerações sua vida
seminômade e pastoral invadindo áreas não habitadas nas zonas montanhosas no sul, no
centro e no Negueb, em busca de pastagens sazonais para seus rebanhos. Outros se
estabeleceram e se tornaram pequenos fazendeiros e, em muitos casos, sem dúvida ficaram
sob o domínio dos agressivos senhores das cidades. Ainda outros, sem terra e sem raízes, não
encontraram nenhum lugar nas estruturas existentes e facilmente se tornaram criminosos e
bandidos ('Apiru).
Já que esses povos — muitos dos quais contribuíram definitivamente para a linhagem de
Israel — tinham vindo para a Palestina durante um longo período e de várias direções, somos
alertados para o fato de que as origens de Israel são verdadeira e excessivamente complexas.
Entretanto, não se pode impugnar, à luz da evidência, a tradição de que os antepassados de
Israel tenham vindo da Mesopotâmia. Podemos presumir que entre os membros destes povos,
embora nenhum texto contemporâneo se refira a eles, estavam um Abraão, um Isaac e um
Jacó, chefes de clãs consideráveis, que colocavam suas origens na "planície de Aram", perto
de Harã. Embora não possamos fixar qualquer dos patriarcas com precisão nesse período, é
provável que o primeiro dos antepassados de Israel tenha vindo à Palestina no início da Idade
do Bronze média (ou mais cedo?), sendo seguido por outros durante o curso do tempo. É
também provável que muito tempo bem antes do final da Idade do Bronze antiga a maioria
dos componentes de Israel fossem encontrados lá, muitos deles ocupando o que seria suas
áreas tribais nos tempos históricos. Provavelmente no período hicso, alguns de seu clã (por
exemplo, José) foram para o Egito. E depois, impelidos pelas dificuldades dos tempos, outros
seguiram o seu exemplo, e lá acabaram sendo escravos do Estado.
3. A religião dos Patriarcas
Mas não podemos satisfazer-nos apenas com demonstrar que os patriarcas foram
indivíduos históricos do segundo milénio a.C. Devemos indagar o seu lugar na história da
religião, especificamente da religião de Israel. É
OS PATRIARCAS 129
sobretudo aqui que se encontra nosso interesse particular por eles. Fora disso, eles não nos
interessariam mais do que quaisquer outros semi-nômades obscuros que vagueavam pelo
mundo em épocas remotas. A Bíblia considera Moisés o fundador da religião de Israel, e
realmente ele o foi. Mas ela também começa a história de Israel e de sua fé com Abraão. Com
efeito, a história da redenção, que é o tema central de ambos os Testamentos, começa com ele.
Sabemos que Abraão partiu de Harã por ordem de seu Deus, tendo-lhe ele prometido terra e
posteridade no lugar que lhe seria mostrado (Gn 12,1-3). Essa promessa, repetidas vezes
renovada (Gn 15,5.13-16; 18,18ss etc.) e selada por aliança (Gn 15,7-12.17-21ss etc.), foi feita
também a Isaac (Gn 26,2-4) e a Jacó (Gn 28,13-15; 35,llss etc.) e a Moisés (Ex 3,6-8; 6,2-8
etc.) e começou a cumprir-se — embora não com um cumprimento completo — na doação da
Terra Prometida. Visto deste ângulo, Abraão aparece como o primeiro antepassado da religião
de Israel.
Mas será que isso está inteiramente de acordo com os fatos, ou é apenas uma projeção
para trás de uma crença posterior, como os estudiosos mais antigos supunham? Embora não
possamos nem por um momento minimizar os problemas inerentes ao assunto, a resposta deve
ser que a religião dos patriarcas como é descrita no Génesis não envolve nenhum
anacronismo, mas representa um fenómeno histórico.61
a. A natureza do problema. Não é fácil deduzir a natureza da religião patriarcal da
narrativa do Génesis. De acordo com uma das correntes (J), o Deus dos patriarcas não era
outro senão lahweh. Ele não só chamou Abraão de Harã (Gn 12,1) e manteve diálogo com
todos os patriarcas, mas também era adorado pêlos homens, desde o alvorecer dos tempos (Gn
4,26). Mas noutro lugar (Ex 6,2ss) afirma-se explicitamente que, embora tenha sido lahweh
que apareceu aos patriarcas, ele não lhes era conhecido por esse nome. Outras versões da
narrativa (E e P) evitam, por isso, e com muito cuidado, mencionar lahweh até chegarem a
Moisés e falam da divindade patriarcal simplesmente como "Deus" (Elohim). Mas todos concordam
que os patriarcas adoravam a Deus, sob vários nomes: El Shaddai (Ex 6,3; Gn 17,1;
43,14 etc.); El 'Elyon (Gn 14,18-24); El 'Olam (Gn 21, •^S); El Ro'i (Gn 16,13; cf. lahweh
Yir'eh, Gn 22,14); El Bethel (Gn 31,13;
35,7).
Veja especialmente A. Alt, "The God ofthe Fathers", Cssayson Oíd Testament History and Religion, 1929 (Trad. ingl.:
Blasckwell, Oxford, 1966, pp. 1-77); mais recentemente, F. M. Cross, HTR, LV (1962), pp. 225-259, e especialmente
Canaanite and Hebrew W Cap. |; também AIbright, FSAC, pp. 236-249; R. de Vaux, "El et Baal, lê dieu dês pères et
Yahweh", Ugaritica, VI, Libr. Paul "euthner, Paris, 1969, pp. 502-517. Para a história da discussão, et H.Weidmann, D/e
Patriarchen un ihre Religion im Licht der Wchung seit Julius Weilhausen, FRLANT, 94 (1968).
130 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
Ora, teologicamente falando, não há nenhuma contradição real nisso. Todas as narrativas
patriarcais foram escritas do ponto de vista de uma teologia javística por homens que
adoravam lahweh. Quer mencionassem seu nome ou não, eles não tinham a menor dúvida de
que o Deus dos patriarcas era realmente lahweh. Deus de Israel, a quem os patriarcas,
consciente ou inconscientemente, adoravam. Entretanto, não podemos atribuir a fé de Israel
posterior aos patriarcas. Embora possa parecer teologicamente legítimo agir deste modo, não
é historicamente preciso afirmar que o Deus dos patriarcas era lahweh. O Javismo começou
com Moisés, como a Bíblia afirma explicitamente (Ex 6,2ss), e como toda a evidência o
confirma. Quaisquer que sejam as origens da adoração de lahweh, não se pode encontrar
nenhum traço desta adoração antes de Moisés. Não podemos, portanto, atribuir aos patriarcas
um Javismo normativo, nem mesmo um Javismo primitivo.
Por outro lado, está completamente errado rejeitar como anacrónico o que a Bíblia nos
pinta da religião patriarcal. Os antigos exegetas costumavam fazê-lo. Achando pouco valor
histórico nas tradições patriarcais como tais, eles consideravam a forma da promessa e da
aliança destas tradições como uma projeção retroativa de uma fé posterior, e procuravam
entender a religião dos antepassados de Israel à luz de características pré-javísticas que
sobreviveram no Israel contemporâneo, ou à luz das crenças e práticas dos árabes
pré-islâmicos. A religião dos antepassados hebreus era geralmente descrita como uma forma
de animismo, especificamente, polidemonismo. Mas isso é totalmente errado. Além de ser
questionável o método aplicado, há dúvidas, à luz de tudo o que conhecemos agora, sobre
esse tipo de religião ter existido no antigo Oriente nos tempos históricos — exceto talvez (os
deuses das montanhas eram adorados até os tempos que podemos alcançar) na forma de
sobrevivências em declínio da Idade da Pedra. Realmente, as religiões do segundo milénio
não oferecem nada semelhante.
A descrição da religião patriarcal deve ser examinada, como o fizemos com relação às
tradições, como um todo, à luz do que conhecemos da religião dos começos do segundo
milénio, especificamente, à luz dos elementos semíticos do noroeste, dos quais se originam os
antepassados de Israel. A evidência, embora não tão perfeita como era de desejar, é contudo
considerável. Ela nos permite ver que a religião patriarcal era de um tipo característico, muito
diferente das religiões pagãs da Mesopotâmia e, a fortiori, do culto da fertilidade de Canaã —
e muito afastada do polidemonismo dos manuais. A descrição que dela nos oferece o Génesis,
apesar de suas características anacrónicas, não é certamente uma projeção retroativa do
Javismo posterior.
OS PATRIARCAS 131
b. O Deus dos Patriarcas. Na narrativa do Génesis cada patriarca é representado
adorando o seu Deus por livre e pessoal escolha e entregando-se depois, a este seu Deus. Esta
característica não implica nenhum anacronismo. Provam-no especialmente certas invocações
arcaicas da divindade encontradas nas narrativas, que indicam um vínculo pessoal íntimo
entre o pai do clã e o seu Deus. São estas as principais invocações: o Deus de Abraão ('elohê
'abraham: por exemplo, Gn 28,13; 31,42.53);62 o Temor de Isaac (pahad Yishaq: Gn
31,42.53);63 e o Poderoso deJacó ('abir Ya'qob: Gn 49,24). Deus era a divindade padroeira do
clã. Temos um exemplo claríssimo disto em Gn 31,36-55, em que no versículo 53 Jacó jurou
pelo Poderoso de Isaac, e Labão jurou pelo Deus de Nacor: isto é, cada um jurou pelo Deus
do clã de seu pai. Os paralelos aduzidos das sociedades aramaicas e árabes dos primeiros
séculos do Cristianismo,64 e também dos textos capadócios e de outros documentos da idade
patriarcal e posteriores,65 nos dão quase a certeza de que o estabelecimento de uma relação
pessoal e contratual entre o chefe do clã e o deus do clã represente um fenómeno difundido e
antigo entre os nómades semíticos.66 A descrição da aliança patriarcal parece, sob este ponto
de vista, da maior autenticidade. Haja vista a aliança do Sinai. Podemos acrescentar ainda que
o modismo peculiar "cortar uma aliança" (por exemplo, Gn 15,18), frequentemente
encontrado nas narrativas, é comum em textos de Qatna do décimo quinto século,
aproximadamente.67
Outra ilustração da relação pessoal entre o indivíduo e a divindade padroeira temo-la em
certos nomes correntes tanto em Israel primitivo como entre seus vizinhos semíticos do
noroeste. Especialmente informativa é uma classe de nomes compostos com 'ab (pai), 'ah
(irmão) e 'amm (povo, família). A Bíblia oferece uma relação enorme de nomes dessa espécie.
E como eles são muitíssimo comuns até mais ou menos o décimo século e muito raros depois
desta época, pertencem claramente a um tipo antigo.68 Nomes do mesmo
"Alguns sugerem que o nome era propriamente o "Escudo de Abraão" (d. Gn 15,1); p. ex.,J. P. Hyatt, VT, V (l 955), p. 130;
°"tros (F. M. Cross seguindo M. Dahood) preferem "O Benfeitor de Abraão" (d. Canaanite and Hebrew Epic, p. 4).
°A sugestão de AIbright {FSAC, p. 248) de que pahad significa" homem sábio" tem sido largamente aceita: mas ela é
contestada Por D. R. Hillers (IBi, XCI, 1972. pp. 90-92, que argumenta que "temor" (no sentido de "objeto de adoração") é
para ser retido.
"Segundo Alt. cuja obra citada na nota 61 é fundamental para nossa discussão.
'''Especialmente J. lewy, "Lestextes paléo-assyriens et 1'AncienTestament", RHR, CX (1934), pp. 29-65. Embora Alt não
aceite os paralelos de Lewy. eles parecem ser válidos: veja agora Cross, ibid, pp. 9-11. Os deuses patriarcais não eram
mmorgenii anónimos.
"Na antiga Suméria o homem comum, sem dúvida porque sentia que os deuses das montanhas eram remotos e inacessíveis,
situavam um deus pessoal, geralmente uma figura menor do panteão, que poderia velar pêlos seus interesses; d. T. Jacobsen,
in H. frankfort, et ai., The Intellectual Adventure ofAndent Man, The University of Chicago Press, 1946, pp. 202-204. Talvez
os deuses da família patriarcal representassem uma concepção paralela entre os "amoritas": d. G. E.Wright, Interpretation,
XVI (1962), pp. 4-6.
"Cf. AIbright, BASOR, 121 (1951), pp. 21ss. Sobre a terminologia e a prática da aliança no antigo mundo semítico, cf.
Cross, '^•t PP. 265-273.
"Por exemplo. Abiram. Ahiram, Eliab, Abimelech, Ahimelech, Abiezer, Ahiezer, Abinoam, Ahinoam, Ammiel, Ammihur,
Ammishaddai. E os exemplos poderiam multiplicar-se facilmente.
132 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
tipo são profusamente documentados entre os elementos amoritas da população na Idade
patriarcal, e podemos presumir que eles eram característicos.69 Uma vez que a maior parte dos
nomes semíticos têm significação teológica, e sendo os elementos 'ab, 'ah e 'amm permutáveis
com o nome da divindade (por exemplo, Abiezer-Eliezer, Abimelec-Elimelec,
Abiram-Jehoram), tais nomes têm importância para elucidar a fé. Assim, por exemplo,
Abiram/Ahiram significa "Meu (Divino) Pai/Irmão é Exaltado"; Abiezer/ Ahiezer, "Meu
(Divino) Pai/Irmão é uma Ajuda (para mim)"; Eliab, "Meu Deus é um Pai (para mim)";
Abimelec/Ahimelec, "Meu (Divino) Pai/Irmão é (meu) Rei"; Ammiel, "(O Deus de) meu Povo
é Deus (para mim)" etc. Esses nomes ilustram maravilhosamente o senso profundo de
parentesco entre o clã e a divindade do nómade antigo: o Deus era o chefe invisível da casa;
seus membros, es membros de sua família.
Outros nomes, pessoais ou divinos, são igualmente instrutivos. Estes nomes dão a maior
evidência de que os antepassados hebreus adoravam a Deus sob o nome de "El". Não somente
temos nomes como Ismael (Que El [Deus] ouça), Jacob-el (assim em vários textos: "Que El
[Deus] proteja"), mas há os nomes divinos já mencionados: El Shaddai, El 'Elyon, El 'Olam,
El Ro'i etc. E uma vez que estes últimos geralmente ocorrem em conexão com antigos
santuários (por exemplo, El 'Olam com Betsabéia [Gn 21,33], El 'Elyon com Jerusalém [Gn
14,17-24]), e uma vez que muitos deles são atestados em textos antigos como títulos de
divindade, temos certeza de que eles são de origem pré-israelita. Podemos supor que, quando
os antepassados hebreus deslocaram-se para a Palestina, as divindades de seus clãs — quaisquer
que tenham sido seus nomes — em virtude de características comuns, começaram a ser
identificados com o "El" que era adorado localmente sob estes nomes.70 Infelizmente, nenhum
deles nos permite identificar a divindade em causa com absoluta certeza. Por um lado, "El" é o
nome do deus principal do panteão canaanita (embora logo rebaixado dessa posição no
pensamento canaanita pelo deus da tempestade, Ba'al-Hadad) do qual, podemos deduzir, os
vários 'elim não passavam de manifestações. Por outro lado, como "El" é também uma palavra
semítica para "deus", ela pode muito bem ser empregada como uma palavra vicária de algum
outro nome divino. E assim não podemos presumir sem critério que estes nomes devem ne-
"Por exemplo, reis de Babilónia l, tais como Hamurabi, Ammi-saduqa, Ammi-ditana, Abieshuh; príncipes de Biblos tais
como Yantin-'ammu. Abi-shemu. São numerosos os paralelos em Mari (veja as obras de Noth e Hufimon citadas na nota 18) e
nos Textos das Execrações (AIbright, BA50R, 83, [1941], p. 34) e alhures.
'"Sobre este parágrafo veja especialmente o artigo de Cross citado na nota 58. Outras discussões incluem: 0. Eissfeldt, Eland
Yahweh, JSS, l (1956), pp. 25-37; M. Haran. The Religion ofthePatriarchis, ASTI, IV (1965), pp. 30-55; R. deVaux, op.cit.,
(na nota 61).
OS PATRIARCAS 133
cessariamente referir-se ao deus-pai El. Mas como 'ôlam parece claramente ter sido um título
de El, que é também conhecido nos textos como "criador" (como é El 'Elyon em Gn
14,18-20), é provável que os patriarcas adoraram suas divindades ancestrais em identificação
com El. Isso é ainda mais corroborado por um título como 'el 'elohê yisra'el em Gn 33,20 (cf.
também Gn 46,3), que tem a sua tradução natural "El, o Deus de Israel" (isto é, deJacó). Por
outro lado, Shaddai, que parece significar "A Montanha" (isto é, uma das Montanhas
Cósmicas), e que é o mais frequente dos nomes,71 não ocorre evidentemente nos textos como
uma invocação de El e, além disso, não está ligado na narrativa do Génesis com nenhum
santuário específico. Pode muito bem ter sido o título de uma divindade patriarcal antiga de
origem amorita, introduzida na Palestina pêlos próprios antepassados hebreus, e aí identificada
com El (que está também associada com a montanha cósmica) e adorada como El Shaddai.72
De qualquer modo, as divindades patriarcais não eram meras divindades locais, porque esses
nomes atestam uma fé em um Deus altíssimo, onipotente e que vela pêlos interesses de seu
povo. El, 'Olam, 'Elyon, e Shaddai eram sempre considerados em Israel mais recente como
nomes ou títulos convenientes a lahweh — assim como não o era enfaticamente Baal.
c. A natureza da religião patriarcal. Embora seja impossível descrever a religião dos
patriarcas em seus pormenores, em virtude das falhas de nosso conhecimento nesse campo, ela
era claramente do tipo comum da religião da época. Em relação a quaisquer experiências
religiosas pessoais que os patriarcas possam ter tido, não podemos naturalmente acrescentar
nada ao que a Bíblia nos diz. Que os antepassados de Israel tenham sido antes pagãos é não só
uma certeza a príori, mas também a própria Bíblia o afirma (Js 24,2.14). Podemos apenas
conjecturar que deuses eles tenham adorado — embora em vista da tradição de Ur-Harã
(ambas as cidades, como notamos acima, centros do culto da Lua) e certos antropônimos
como "Terá", "Labão" etc., possamos supor que a família de Abraão tenha antes sido adepta
de Sin. Mas não podemos saber e, em todo caso, seria arriscado generalizar, tão diversas Eram
as raízes dos vários componentes do Israel de hoje. Tampouco sabemos que experiência
espiritual levou Abraão a dar ouvidos à voz do "novo" Deus que lhe falou e, rejeitando os
cultos de seus progenitores, sair, à ordem deste
É um elemento que aparece frequentemente nos antigos antropônimos, por exemplo, Shaddai-'or. Shaddai-'ammi.
'Ammi-"addai; cf. também nomes com 5ur(rocha, montanha): Pedasur, Elisur etc. Sobre Shaddai veja AIbright, IBi, LIV
(1935), pp. 180-1 "j Cross, ibid., pp. 52-60.
Cross considera isso uma possibilidade (ibid) e L. R. Bailey o defende tenazmente (1BL, LXXXVII [l 968], pp. 434-438),
que ,enclona o bei jade mencionado nos textos antigos babilónicos como um deus principal dos amoritas. Veja também, .1.
Ouellette, •'".l-XXXVIIKTOl.pp^Oss.
134 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
Deus, para uma terra estranha. Sem dúvida que entraram em jogo fatores económicos, mas,
em vista da natureza pessoal da religião patriarcal, podemos estar certos de que houve no caso
uma experiência religiosa. A migração patriarcal foi condicionada ao tempo, mas, num
sentido bem real, foi um ato de fé.73
De qualquer modo, quaisquer que tenham sido suas experiências pessoais, cada patriarca
afirmava que o Deus que lhe tinha falado era o seu Deus pessoal e o patrono de seu clã. O
quadro do Génesis, de um relacionamento pessoal entre o indivíduo e seu Deus,
fundamentado por uma promessa e selado por uma aliança, é da maior autenticidade. A fé na
promessa divina parece, de fato, representar o elemento original da fé dos antepassados
seminômades de Israel.74 A promessa, tal como é descrita no capítulo quinze do Génesis e nos
seguintes, era primariamente uma promessa de possessão de terra e de numerosa
descendência. E era exatamente isso que mais desejavam os seminômades. Se os patriarcas
seguiam o seu Deus, se eles acreditavam que ele lhes tinha prometido alguma coisa (e
certamente eles devem ter acreditado, doutro modo não o teriam seguido), então terra e
posteridade, podemo-lo supor, eram a essência da promessa. Tampouco a descrição da aliança
(isto é, a relação contratual entre o adorador e Deus) é anacrónica. E dificilmente se pode
toma-la como um reflexo da aliança do Sinai, como se fez muitas vezes, porque existem
diferenças sensíveis entre as duas. Não resta dúvida de que ambas são descritas como
iniciativas da divindade. Mas, ao passo que a aliança do Sinai era baseada num ato de graça já
realizado e anunciado em cláusulas precisas, a aliança patriarcal se baseava somente na
promessa divina e exigia do adorador somente a sua confiança (por exemplo, Gn 15,6).75
A religião patriarcal era assim uma religião de clã, na qual o clã era realmente a família
do Deus patrono. Embora possamos supor que dentro do clã o Deus patrono fosse adorado
acima de todos os outros deuses, quando não com exclusão de todos eles, seria errado chamar
a este tipo de religião monoteísmo. Também não sabemos se a religião dos patriarcas era uma
religião sem imagens. A religião de Labão com certeza não o era (Gn 31,17-35). Entretanto,
ela não se parecia nem com as religiões politeístas oficiais da Mesopotâmia nem com o culto
da fertilidade de Canaã, de cujas orgias não
"W. Eichrodt, Religionsgeschichte Israels, Francke Verlag, Berna, 1969, p. 10, refere-se a esta migração como uma Hégira.
"Veja especialmente, Alt, op. dt., pp. 45-66. Cf. M. Noth, VT, Vil, (l 957), pp. 430-433, criticando J. Hoftijzer, Díe
Verheinung an die drei Erzvãter, E. J. Brill, Leiden, 1956, que discorda; também R. E. Clements, Abraham and David, SCM
Press, Londres, 1967, pp. 23-34. "Cf. especialmente G. E. Mendenhall, BA, XVII, 1954, pp. 26-46, 50-76 (reimpressão, BA
Reader3, 1970, pp. 3-53, sobre o padrão da aliança em Israel. M.Weinfeld (JAÓS, 90, 1970, pp. 184-203) veja paralelos
entre a aliança patriarcal (e davídica) e a "subvenção real" na qual o senhor da terra promete a um vassalo fiel terra e uma
dinastia duradoura; d. Também J. D. Levinson, CBQ, XXXVIII, 1976, pp. 511-514.
OS PATRIARCAS 135
há nenhum vestígio na narrativa do Génesis. Podemos até supor que essas últimas orgias
repugnavam a nómades simples como Abraão, Isaac e Jacó. De qualquer modo, é interessante
que entre todos os nomes divinos compostos com "El" nestas histórias, não se encontra
nenhum nome composto com "Baal". É também possível que a história do quase sacrifício de
Isaac (Gn 22), qualquer que seja a lição que ele pretenda ensinar no presente contexto, reflete
a convicção de Israel — convicção certamente correia — de que seus antepassados nunca
condescenderam com a prática do sacrifício humano vigente entre seus vizinhos. O culto cbs
patriarcas é descrito como excessivamente simples, como devia ser. O centro deste culto era o
sacrifício animal, como entre todos os semitas. Mas esse sacrifício era consumado sem um
clero organizado, em qualquer lugar, pela mão do próprio chefe do clã. Quando os patriarcas
entraram na Palestina,, tiveram contacto com diversos santuários: Siquém, Betei, Bersabéia
etc. Nesses santuários, eles, sem dúvida, praticaram seu culto e o perpetuaram,
identificando-os com os cultos já existentes nesses lugares. Todavia, o culto patriarcal nunca
foi um culto local, mas sempre o culto da divindade ancestral do clã.
d. Os patriarcas e a fé de Israel. Quando os clãs patriarcais passaram para dentro do
sangue de Israel, e quando os seus cultos foram absorvidos pelo culto prestado a lahweh —
procedimento que é teologicamente muito legítimo — não podemos duvidar de que a
estrutura e a fé de Israel tenham tomado, em virtude disso, uma feição mais profunda. Já
sugerimos que a tradição legal de Israel deve ter-lhe sido transmitida pêlos seus próprios antepassados
seminômades, muitos dos quais tinham-se estabelecido na Palestina, desde os
começos do segundo milénio, e não por uma mediação estritamente canaanita. O mesmo se
pode dizer verdadeiramente de suas tradições de antiguidade primitiva, para não falar das
tradições das próprias migrações ancestrais, que, formadas no espírito do Javismo,
tornaram-se o veículo de sua teologia da história. Acima de tudo, havia na herança de Israel
um sentimento de solidariedade tribal, de solidariedade entre o povo e Deus, que deve ter
contribuído mais do que podemos supor para este senso intensamente forte de "povo", tão
característico de Israel em todos os tempos.
Além disso, a ideia de promessa e aliança estava arraigada na mente israelita. Podemos
supor que, quando certos elementos, que mais tarde deviam incorporar-se a Israel,
estabeleceram-se na Palestina e começaram a mul-Uplicar-se, a promessa da terra e da
posteridade era considerada por eles como cumprida. Os cultos ancestrais, agora realizados
em santuários locais, ganharam com isso um prestígio enorme. Entretanto, outros elementos,
que
136 ANTECEDENTES E PRIMÓRDIOS
também deviam mais tarde incorporar-se a Israel, não se estabeleceram tão cedo, mas
continuaram sua existência seminômade. Outros elementos ainda — o verdadeiro núcleo do
Israel mais recente — foram para o Egito. A promessa inerente ao seu tipo de religião
permaneceu, portanto, sem cumprimento. E uma vez que não se cumpriu nenhuma promessa
até a invasão da Palestina sob a égide do Javismo, a fé normativa dos hebreus — com justificação
— considerava este último acontecimento como o cumprimento da promessa feita aos
primeiros pais. Mesmo então, a noção de uma aliança fundamentada pelas promessas
incondicionais de Deus continuava a existir, em todo o tempo e em todas as circunstâncias, na
mente dos hebreus, poderosamente formando a esperança nacional, como veremos.
Devemos pôr um ponto final a esta nossa discussão. Embora continuem ainda muitos
hiatos, já se disse o bastante para estabelecer a confiança de que o quadro dos patriarcas
apresentado pela Bíblia está profundamente fundamentado na história. Abraão, Isaac e Jacó
permanecem, no mais verdadeiro sentido, no começo da história e da religião de Israel. Eles
não representam apenas aquele movimento que trouxe os membros de Israel para a Palestina;
também suas crenças peculiares ajudaram a dar forma à religião de Israel, como ela devia ser
mais tarde.76 Com eles, ainda, começou a busca incessante do cumprimento da promessa, a
qual, embora realizada pela posse da terra e da posteridade, não podia ser satisfeita só com
esses dons, mas, como um dedo apontando através de todo o Antigo Testamento, devia
conduzir à cidade "da qual Deus é arquiteto e construtor" (Hb 11,10). Abraão começou muito
mais do que pensava começar. Não é, portanto, sem sólida razão histórica que os cristãos e os
judeus o consideram como o pai de toda a fé (Gn 15,6; Rm 4,3; Hb 11,8-10)
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
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