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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

thomas de quincey

Thomas de Quincey viveu de 1785 a 1859 na Inglaterra, e é reconhecido como um importante
autor e crítico literário, mais famoso pela sua autobiografia "Confissões de um comedor de
ópio". Influenciou autores como Edgar-Allan Poe, Charles Baudelaire e leitores comuns no que
diz respeito à experiência com ópio como um veículo de expansão da mente e do processo de
criação.
Seu pai morreu quando tinha sete anos, e Quincey foi entregue ao cuidado de tutores, que eram
considerados por ele como pessoas sem imaginação. Quando criança perdeu duas irmãs, e a
morte daquela que era tida por ele como a mais querida, Elisabeth, que faleceu aos nove anos
(quando Quincey tinha seis), foi um dos temas mais fortes em seus sonhos adultos. Saiu de
casa aos dezessete anos.
Viciou-se em ópio no período que cursava a faculdade de Letras, onde nunca se formou.
Conheceu escritores famosos, como Taylor Coleridge, e após ter despendido sua herança,
começou a viver do jornalismo; escrevia histórias, artigos e resenhas. Casou-se com a filha de
um fazendeiro, com quem teve oito filhos.
A primeira publicação de "Confissões" foi feita no London Magazine e Blackwoods em 1821,
através de capítulos e de forma anônima, e tornou-se rapidamente um sucesso.
Resumo da obra :
A grande quantidade de ópio que Quincey ingeria na época da escrita do livro « Confissões de
um comedor de ópio » deve ser responsável pela estrutura lógica não muito firme que segue a
condução da história, e o próprio autor afirmou que escrevia como se estivesse « pensando alto
», estrutura esta que se assemelha ao conceito de associação livre descrito por Freud.
« Mas a minha maneira de escrever é quase a mesma de pensar alto, seguindo meus próprios
humores, em vez de considerar em demasia quem está me ouvindo ; e se parar para pensar no
que devo dizer a essa ou aquela pessoa, logo estarei em dúvida sobre se o que digo é
realmente adequado »(p.117)
Neste livro Thomas de Quincey procura demonstrar os efeitos do ópio sobre a capacidade de
pensar,sentir e sonhar, ao que os estudiosos do autor e da obra definem como um estudo
pioneiro, pré-psicanalítico, da interferência de uma instância « incontrolável » na mente.
Quincey inicia seu livro pontuando que não é fácil a tarefa de expor fatos íntimos de sua vida ao
público, mas que o motor que o move em tal tarefa seria uma inquietação que o acompanha
diante da vida e a busca de explicações no âmbito da filosofia para o sentido da mesma, sendo
que a sua experiência (exagerada como ele admite) com o ópio teria dado oportunidade de uma
vivência profunda do sentido da dor e do prazer.
O autor nos conta que após o falecimento do pai, foi entregue aos cuidados de tutores,
considerados por ele como rudes, ignorantes e que considerava intelectualmente inferiores a
ele, com exceção de um, que lhe abriu o território para o conhecimento da língua grega, que
articulava e manejava com excelência.
Sentindo que a vida escolar não dava conta de responder às suas demandas existenciais e
intelectuais, Quincey foge do colégio e dos tutores, para tentar o ingresso em uma universidade.
Entretanto, o dinheiro que tinha se esvai muito rapidamente e passa a viver de favores e tornase
um « homeless », onde experimenta uma angústia física muito profunda causada pela fome.
Recusa-se a pedir dinheiro para família, porque não quer ser localizado.
Em Londres, divide o espaço de uma casa abandonada com uma criança de dez anos, de quem
1
se tornou um companheiro de miséria. Sentia-se esgotado porque não conseguia dormir em
decorrência das fortes dores no estômago; neste período alimentava-se com as migalhas e
sobras das mesas dos restaurantes.
Durante o dia caminhava pelas ruas de Londres e foi numa destas andanças que Quincey
conheceu Ann, uma prostituta que lhe salvou a vida, dando um vinho do Porto condimentado no
momento em que ele estava desfalecendo, atitude esta que será sempre lembrada por ele, visto
que Ann mal tinha dinheiro para sustentar-se.
Depois deste momento Quincey decide entrar em contato com amigos da família para que
intercedam ante sua situação. Estes lhe emprestam dinheiro e ele consegue entrar para a
universidade, também começa a trabalhar. Todos os dias procurava por Ann, pois tinha
prometido ajudar-lhe na retomada de sua propriedade, mas nunca mais a encontra após o
retorno de uma breve viagem.
Inicia-se um período que Quincey denomina como aquele regido pelos « prazeres do ópio ». O
autor conta que foi acometido por uma forte nevralgia, que ele considera resultado da ausência
de seu ritual diário (e infantil) de lavar a cabeça todos os dias pela manhã com água fria, sendo
assim, sai da cama, lava a cabeça e dorme com os cabelos molhados. Na manhã seguinte
acorda com dores reumáticas, e um conhecido da faculdade indica o ópio como tratamento.
Quincey abençoa aquele dia, este amigo e o farmacêutico que lhe vendera o ópio, que é
considerado por ele como um presente dos céus. Sente-se radiante por ter descoberto o elixir
que poderia conter todas as mazelas da humanidade, com a vantagem de que « êxtases
portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela
diligência do correio »(p.80).
O autor entra em defesa do ópio, embalado pela intensa sensação de prazer que a substância
lhe proporciona, e que ao contrário do álcool, não inibe, e sim expande as faculdades mentais e
afetivas.
Na etapa seguinte da obra, inicia a descrição de um período que aponta como aquele sendo
vivido através das « dores do ópio ». Com a saída da universidade ele vai viver em uma cabana
com uma empregada, de onde escreve artigos para jornais, textos. A morte da filha (criança
muito querida por Quincey) de um amigo é sentida com uma manifestação somática no
estômago, para qual ele administra o ópio, aumentando progressivamente a dosagem ingerida
de láudano, até chegar ao consumo diário de aproximadamente oito mil gotas (320 grãos).
Neste momento Quincey revela o incômodo de não coordenar seus pensamentos racionais, e o
pavor provocado pelos sonhos, que lhe traziam muito sofrimento.Descreve nestes termos :
« De noite, quando ficava acordado na cama, longas procissões( de fantasmas- grifo nosso)
passavam por mim com uma pompa melancólica ; arrepios de histórias sem fim, que para o
meu sentir eram tão tristes e solenes como se fossem histórias tiradas de tempos antes de
Édipo ou Príamo, antes de Tiro e antes de Mênfis »(p.126). Passando então na parte final da
obra a descrever os sonhos, que são encenados em seu cérebro, « palco do terror »...
Qual seria então o desejo de nosso autor? Para Radmila Zygouris, o sonho é o objeto de desejo
para o insone. Por que este desejo era para Quincey tão ameaçador? Esta mesma autora
pontua que a espera do sono se processa como uma modalidade de angústia, pois seria neste
momento que entramos em contato com os horrores do tempo e da perda, constituindo-se assim
esta espera como objeto substitutivo. Entretanto este é um objeto que faz sofrer... Não teria ele
um caráter punitivo? Ou seria defensivo?
Radmila aponta que o sono é sempre um retorno. Retorno do infantil, do recalcado, do Real, a
um estado de não existência que pode ser entendido como a morte. Morte que assombra nosso
autor, apesar de lhe causar fascínio e atração. Parece que Quincey sentiu-se incomodado com a
incapacidade de controlar os efeitos da droga em seu corpo.Foi exatamente a constatação da
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possibilidade da proximidade da morte que o levou a uma redução do consumo do ópio (embora
tenha consumido-o até o fim da sua vida).
Algumas considerações preliminares:
Em seu estudo autobiográfico, Freud situa uma tradição, que teria se iniciado na França, da
leitura de sua obra pelos homens de letras, que prosseguiram numa modalidade já apresentada
por ele (estudos sobre Leonardo da Vinci), da análise de artistas e suas produções.
Alguns críticos desta forma de trabalho questionam que não é possível que deitemos uma obra
no divã, e que a única aplicação da psicanálise seria dentro do próprio setting analítico.
Entendemos que seria limitada a tentativa de analisarmos um personagem ficcional como se ele
fosse um paciente de carne e osso, com sua história e subjetividade. Entretanto, muitos
analistas vêm se debruçando sobre os estudos da relação existente entre o trabalho de
composição artística (que pressupõe a existência de um sujeito), e a psicanálise. Modalidade
esta que a nosso entender segue um caminho traçado por Freud.
Situando dentro desta temática, Mannoni (1995) em seu texto "Trauma e criação" aponta o
processo criativo como uma possibilidade de elaboração psíquica por parte do sujeito. Este
processo ocorreria graças à possibilidade da (re) construção de uma experiência inicial de
desamparo. O ganho, com esta atividade poderia ser a libertação de um movimento de
repetição sintomática.
Citando Freud, Mannoni destaca que o trabalho no terreno da fantasia permite uma passagem
do princípio do prazer para o da realidade, através de uma substituição das satisfações
pulsionais.
Dentro desta perspectiva procuraremos entender qual seria o papel da angústia no texto
"Confissões de um comedor de ópio", enfocando na descrição dos sonhos por ele apresentados,
traçando um singelo diálogo com o livro da Interpretação dos Sonhos (1900) de Freud.
Sonhos de um comedor de ópio:
Na última parte de seu livro Quincey passa a fazer uma descrição de seus sonhos, classificados
por ele como apavorantes e angustiantes. A ausência das associações do sonhador limitam uma
possibilidade de interpretação. Pretendemos fazer aqui algo mais semelhante ao processo
descrito por Freud em seu texto "Construções em análise" (1937), onde preencheremos algumas
lacunas da fala do autor com o referencial freudiano acerca dos processos oníricos.
"... uma simpatia parecia surgir entre os estados de sono e vigília do cérebro; tudo que eu traçasse
através de um ato voluntário na escuridão era bem capaz que logo surgisse em meus sonhos. (...) todas
as coisas criadas por mim dentro da escuridão logo se transformavam em fantasmas aos meus olhos
(...) uma vez traçados em cores demasiadas e visionárias ganhavam (...) um insuperável esplendor que
desgastava meu coração." (p.127).
Nesta passagem Quincey vai descrevendo como pensamentos da vida de vigília ganham
terreno em seus processos oníricos. Vemos aqui a descrição de uma das estruturas que Freud
aponta como constituintes dos sonhos, os restos diurnos onde há um resto de energia que não
foi investido durante o dia. Muito possivelmente também está presente uma outra estrutura a
partir da qual um sonho é gerado, que seria a excitação do desejo inconsciente durante a
atividade de vigília, que vai encontrar no sonho possibilidade de realização.
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Quincey descreve que estes sonhos eram acompanhados por estados de ansiedade e profunda
melancolia, sentia-se descendo a fendas profundas e escuras e era acometido por idéias de
suicídio, assombrado como que por fantasmas. Interessante apontar que ao longo do livro,
durante as passagens onde descreve a impossibilidade de dormir devido à fome, fala também
dos fantasmas que as crianças encontram à noite. Estaria o nosso autor sendo assombrado por
fantasmas "infantis"?
Tanto Radmila (1995) quanto Mannoni (1995) destacam a sensação de abandono presentes nos
sonhos de angústia. Durante o período de miséria que viveu em Londres, Quincey dormia em
uma casa abandonada abraçado a uma criança pobre para que esta se sentisse mais segura.
Justo ele que parecia ter sido abandonado pela provedora (e maternal) sorte, e que foi
realmente abandonado por um pai que morreu tão cedo e não pôde evitar seu sofrimento...(não
é por acaso o emprego numeroso da palavra abandono, parece que este é um fator de repetição
ao longo da obra).
"Os incidentes mais momentâneos da infância ou as cenas esquecidas dos últimos anos eram
freqüentemente revividos. (...) Disso, pelo menos estou seguro: não há nada que possa ser esquecido
pela mente".(p.128/129).
Tal citação encontra forte ressonância na afirmação de Freud no capítulo VII, item d-do livro da
Interpretação dos Sonhos, quando afirma que "no inconsciente nada pode ser encerrado, nada é
passado ou está esquecido".
Ao longo da leitura do livro da IS, acompanhamos como Freud vai construindo o conceito de
aparelho psíquico, utilizando para esta costura a linha do desejo. Acompanhando o caminho do
desejo conforme os referenciais da psicanálise, percebemos que é ele mesmo que nos constitui
enquanto sujeitos, e que nossas primeiras relações com o mundo serão atravessadas pelo
desejo. Esta experiência no início perceptiva, e que caminha em direção a uma representação,
deixa marcas, traços (mnêmicos), que serão revisitados, atualizados. E através da construção
da definição de sonho vamos percebendo como Freud alcança este ponto:
O sonho é a realização de um desejo (cap. II).
O sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado).(capIV).
Que conteúdos latentes estariam por trás das cenas infantis que apareciam nos sonhos de
nosso autor? Seguindo a fala posterior à citação apresentada ele destaca a lembrança de um
tio, que numa situação de quase-morte vê sua vida passada como num filme. Colocando-se
numa posição análoga a seu parente, fala da lembrança de detalhes insignificantes de sua vida,
saberes incompreensíveis e faltas que não mais podem ser escondidas. Tal idéia nos remeteu à
questão da sexualidade infantil, a formulação de hipóteses, a busca de respostas acerca de um
saber (sobre o desejo) transmutado em uma curiosidade sexual, e a culpa associada a um
prazer sentido no próprio corpo via masturbação.
Quincey fala de sonhos onde ocupava postos de poder durante o Império Romano (era um leitor
dedicado da História de Roma), e descreve cidades e palácios pomposos, com torres que alcançavam
as estrelas. Muitas vezes estes palácios eram invadidos por centuriões e surgia então uma guerra
sangrenta.
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Em seus sonhos descrevia que os sentidos de espaço e de tempo foram incrivelmente
aumentados, as construções e paisagens eram exibidas "numa proporção muito maior que o
olho físico é capaz de oferecer".(p.128). O mesmo ocorria no que diz respeito à percepção de
tempo, e o autor descreve a sensação de ter vivido 70 ou 100 anos em apenas uma noite, ou
que esta extensão de tempo havia se multiplicado em milênios.
Neste ponto podemos considerar o traço narcísico (aqui na forma de megalomania), que teve
tantos desdobramentos na vida do autor.
Lembremos que a fuga da escola deu-se porque Quincey não pôde confiar aos seus tutores um
papel transferencial de autoridade. Era como se não houvesse assimetria, ele achava que os
professores não tinham nada a lhe acrescentar, pelo contrário, ele é que tinha a lhes ensinar.
Sair de casa sem destino e dinheiro pressupôs também uma certeza de que ele conseguiria se
virar, pois era "esperto" (onipotente). Entretanto, conhecimento e saber não podem ser
confundidos, parece-nos que a ausência de respostas, a sensação de vazio estava encoberta
por estes sentimentos de poder e controle, e a posterior impressão de preenchimento causada
pelo ópio teria sido um fator decisivo (embora ilusório), no processo de dependência química
(sobre a qual ele dizia ter controle).
No capítulo VI, item "e" do Livro da IS, Freud fala da representação por símbolos nos mesmos.
Torres enormes que tocam as estrelas remete-nos à imagem do falo – pênis, que estaria
representando o desejo inconsciente da obtenção do poder, aquele que tem o falo seria o
detentor do poder.
Aos sonhos arquitetônicos surgiam aqueles com lagos e grandes extensões de água que o perseguiam.
Sintomaticamente Quincey pensava estar sofrendo de algum "estado hidrópico", com manifestações
somáticas de dores de cabeça, e o medo de estar enlouquecendo.
As águas iam mudando de aspecto e de lagos translúcidos
transformavam-se em mares e oceanos.
Além de retomar o aspecto antes apresentado no que diz respeito à questão do poder, aparece
aqui a temática do medo da loucura. Foucault, em seu artigo A água e a loucura (1963),
descreve que há uma relação estabelecida entre a água e a loucura, muito em função dos
tratamentos praticados pela medicina asilar a partir do século XIX, através de banhos e
duchas.Para este autor a água como tratamento contra a loucura teria quatro funções: ela é
dolorosa, ela humilha, dilui e castiga. Pontua também que a psicanálise se apropria de um
elemento natural diferente, o ar no qual as palavras se propagam (o mesmo ar, que em meados
do século XIX também vai ser associado à loucura, como a fumaça aspirada do ópio) e que
encontram no campo analítico espaço para simbolização e significação.
Não estaria Quincey, conforme aponta Freud, procurando atribuir imagens e palavras para o seu
desejo através do trabalho de representabilidade do sonho? Mannoni (1995) aponta que "a
angústia proviria do elemento recalcado que torna a se mostrar, e é encontrado sob a forma do
que Freud denominou inquietante estranheza".(p.16), que deveria ser algo esquecido, mas que
insiste em voltar, e que graças ao recalcamento não conseguimos reconhecer como pertencente
ao nosso psiquismo.
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Uma próxima etapa é descrita pelo autor como a "tirania do rosto humano", e das águas dos oceanos
começaram a aparecer rostos ("rostos implorando, furiosos, desesperados, surgidos das profundezas
aos milhares, por gerações e por séculos. Minha agitação era infinita, minha mente vomitava e moviase
como oceano" p.135).
Esta engenhosidade nos sonhos é descrita por Freud como o indicativo do trabalho do sonho
(bem como a sensação, também descrita por Quincey, da longa duração de um sonho). Ele
aponta que um sonho pode levar dias para se constituir.
Quincey mostra num movimento pós-sonho (elaboração secundária), que faz menção à época
que perambulava entre as multidões pelas ruas de Londres. Além da questão da exarcebação
das quantidades (este parece ser um tema que se repete). Após perder Ann ele passou vários
anos procurando seu rosto na multidão. Justamente esta mulher, que parecia encarnar a figura
de irmã, mãe e amante no imaginário do autor. De qualquer forma ela era a condensação de
três figuras femininas que se perderam...
Pensando no significante ´face`, podemos pontuar que estes rostos eram também portadores de
diferentes aspectos que o constituíam, muitos dos quais desconhecidos (inconscientes) ou
tiranos (superegóicos).
Descreve então os sonhos com temáticas asiáticas, e a perseguição por parte do malásio, onde em
meio às construções, tradições e supertições asiáticas, sentia-se cercado de pessoas.O sonho evoluía
para uma condensação de ambientes tropicais, sua vegetação, usos e costumes. Sentia-se olhado e
ridicularizado pelos animais. "Corria por pagodes e era encerrado, por séculos, no topo, ou em quartos
secretos; era o ídolo, o sacerdote, era consagrado, sacrificado; fugi da ira de Brama por uma floresta
asiática; Vishnu me odiava, Shiva me esperava. De repente, cheguei à frente de Isis e Osíris; havia
feito uma proeza, disseram, que deixava trêmulos os crocodilos e as íbis. Fui enterrado, por milhares de
anos, em um caixão de pedra, com múmias e esfinges, em quartos estreitos no coração da pirâmide
eterna. Fui beijado por crocodilos de beijos cancerosos e abandonado entre os juncos e o lodo do
Nilo".p.137
Numa das passagens do livro Quincey descreve que um dia recebera em sua casa a visita
inusitada de um malásio, que causou estranheza e curiosidade em toda a vizinhança. Ninguém
conseguia compreendê-lo e não querendo parecer ignorante diante de sua empregada e
vizinhos, utilizou algumas palavras em grego e o nome empregado no oriente para ópio, ao que
o malásio sorriu. Mesmo sem continuar entendendo o que ele queria dizer, um vínculo foi criado
pelo ópio, e nosso autor livrou-se de passar um ridículo frente aos seus. Deu uma quantidade
suficiente da droga para o estrangeiro, na tentativa de animar-lhe na caminhada, e ficou
estarrecido quando o malásio colocou todos os grãos na boca, pois era uma dosagem capaz de
matar um homem. Quincey ficou preocupado com o que poderia ter acontecido ao homem, mas
como não ouviu nenhuma notícia, pressupôs que ele deveria estar acostumado ao ópio.
Parece que a possibilidade de existir alguém que consumisse mais ópio que Quincey (ele
constantemente gabava-se por suportar mais ópio do que qualquer literatura médica já havia
descrito), deixa nas entrelinhas do texto uma idéia de competição. Competição como aquela
travada com seu irmão, que era considerado por ele como "tão inventivo quanto selvagem", e
que via com desdém sua capacidade de sonhar.
Que segredos continham os quartos nos quais era trancafiado? Não seriam os deuses descritos
substitutos para as figuras fraternas e parentais? Novamente aqui o tema do abandono é
explicitado, abandono este que ele próprio "atuou" com sua saída de casa.
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Vemos também mais um dos aspectos do trabalho dos sonhos, o deslocamento, que junto à
condensação e representabilidade agem a serviço da censura, de modo a tornar o sonho
inteligível e suportável para o ego.
A seguir Quincey passa a narrar sonhos com a temática da morte de pessoas queridas. Ele fala de verse
na região dos Alpes, a vista do cemitério e a tumba de uma criança que ele amara e que morrera
recentemente. Ao abrir o portão do jardim viu que havia uma mulher sentada, e esta era Ann, e sentiase
aliviado por tê-la encontrado, mas o escurecimento das nuvens levou-o novamente à visão dos
tempos em que andava com ela pelas ruas de Londres.
Será no capítulo V, item d que Freud vai falar sobre sonhos com a morte de pessoas queridas,
que também podem desencadear angústia. Sabemos que duas irmãs de Quincey morreram
crianças, dentre elas a sua irmã mais querida, Elisabeth, que foi por ele velada. Posteriormente
acompanhamos a busca de Quincey por Ann, que sumiu para sempre, e cujo rosto ele não
esquece. Por fim sabemos que ele tinha muita afeição pela filhinha de um amigo fazendeiro (ele
casou-se com a filha mais velha desta pessoa). Foi a morte desta criança que lhe trouxe uma
forte perturbação gástrica a partir da qual ele passa a consumir ópio diariamente.Parece-nos
que há uma cadeia associativa que liga estas figuras femininas a perdas.
No texto acima citado Freud descreve como o conteúdo latente de sonhos com a morte de
pessoas queridas podem ocultar uma rivalidade entre irmãos, e comenta que a morte de
crianças pequenas circula no universo da fantasmática familiar, e têm um desdobramento nas
neuroses subseqüentes.
A concepção de morte para uma criança pequena seria diferente da idéia da noção de
decomposição física que tem um adulto, e se associaria à idéia de que quem morreu apenas foi
embora. Desta forma, Freud nos leva a concluir que a constatação por parte do adulto do desejo
(infantil) da morte de uma pessoa querida pode resultar em culpa, que na constituição onírica
pode ganhar os contornos da punição. Todos estes componentes seriam oriundos do anunciado
processo do Complexo de Édipo.
O último sonho descrito por Quincey, fala de sua curiosidade ante uma movimentação que parecia ser
uma coroação, e o movimento de uma luta a qual ele não conseguia entender por quem e como.
Novamente uma confusão de pessoas, luzes, formas e a visão de despedidas, a sensação de adeuses
eternos. "Palavras pronunciadas num suspiro, como suspiravam as profundezas do inferno quando a
mão incestuosa (grifo nosso) pronunciou o nome da Morte. Adeuses eternos! Uma e outra vez...
adeuses eternos! Acordei em convulsões e gritei:" Nunca mais vou dormir!". (p.143).
O desejo do pré-consciente é, conforme indica Freud no capítulo VII do livro da Interpretação
dos Sonhos, o de dormir. Podemos entender, a partir deste referencial, que os sonhos de
Quincey não conseguiam muitas vezes levar a cabo a formação de compromisso entre o
inconsciente e o pré-consciente, uma vez que a realização do desejo inconsciente feria o préconsciente
com violência.
Desta forma podemos saber que há desejos envolvidos nos sonhos de angústia instalados no
inconsciente e repudiados pelo pré-consciente, que mesmo em primeira instância se apóiam nos
mecanismos de distorção onírica, auxiliados pela representabilidade e processos de censura nos
sonhos, e em última instância, quando trabalham com alta intensidade psíquica eles acabam por
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despertar o sonhador.
Além disso, Freud questiona a questão do prazer e desprazer, uma vez que um pensamento
que pode ser considerado desprazeroso por ocasião do sonho pode ter sido prazeroso em sua
origem (pré-recalque).
Neste sentido os afetos teriam um papel fundamental, uma vez que é a supressão dos mesmos
uma tentativa de evitar o desprazer, entretanto tais afetos estariam também ligados às
representações inconscientes que seriam recalcadas. A liberação de um afeto sem uma
representação à qual possa estar atrelada também é um fator ansiógeno.
Por fim, Freud pondera que a angústia nos sonhos pode ser um problema de angústia associada
à neurose, sendo que a angústia neurótica provém de fontes sexuais, cujos traços podemos
identificar nos sonhos descritos por Quincey (sonhos de onipotência, rivalidade, de figuras
femininas, sonhos que demonstram perseguição, culpa, medo de destruição/castração).
Neste ponto seria importante que refletíssemos sobre um dos pressupostos do autor, que atribui
ao ópio a responsabilidade pela produção dos sonhos de angústia. Para Thomas de Quincey
estes sonhos terroríficos seriam resultado do efeito do ópio em seu cérebro.
Não podemos deixar de negar o efeito da droga como facilitadora num processo regressivo,
onde ocorre uma maior acuidade dos fatores perceptivos. Entretanto, por mais que houvesse
um certo aguçar das sensações não podemos, depois da produção freudiana sobre o aparelho
psíquico, e depois da leitura do livro da Interpretação dos Sonhos, considerar que os sonhos
descritos foram produzidos apenas graças ao efeito da droga.
Esta afirmação só pôde ser feita a partir da conceituação de um aparelho psíquico, que consta
de uma instância inconsciente, onde não há aleatoriedade. Embora Quincey suspeitasse (mas
rejeitasse) que havia dentro dele uma parcela incontrolável (justamente aí os seus desejos de
onipotência esbarravam), ele nunca encontrou uma resposta conclusiva; entretanto no ano de
sua morte (1859) uma criancinha em Viena, aos três anos de idade já era uma promessa...
Gostaria de agradecer à professora Laurinda, demais professores e colegas de curso, pela
companhia e contribuição neste processo de formação (às vezes tão angustiante...).
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "A Interpretação dos sonhos" in Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MANNONI, M. Amor, ódio, separação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
MOTTA, M. Foucault-Problematização do sujeito: Psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
QUINCEY, T. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L & M Editores, 2001.
ZYGOURIS, R. Ah! As belas lições!São Paulo: Escuta, 1995.
Sobre o autor:
Thomas de Quincey viveu de 1785 a 1859 na Inglaterra, e é reconhecido como um importante
autor e crítico literário, mais famoso pela sua autobiografia "Confissões de um comedor de
ópio". Influenciou autores como Edgar-Allan Poe, Charles Baudelaire e leitores comuns no que
diz respeito à experiência com ópio como um veículo de expansão da mente e do processo de
criação.
Seu pai morreu quando tinha sete anos, e Quincey foi entregue ao cuidado de tutores, que eram
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considerados por ele como pessoas sem imaginação. Quando criança perdeu duas irmãs, e a
morte daquela que era tida por ele como a mais querida, Elisabeth, que faleceu aos nove anos
(quando Quincey tinha seis), foi um dos temas mais fortes em seus sonhos adultos. Saiu de
casa aos dezessete anos.
Viciou-se em ópio no período que cursava a faculdade de Letras, onde nunca se formou.
Conheceu escritores famosos, como Taylor Coleridge, e após ter despendido sua herança,
começou a viver do jornalismo; escrevia histórias, artigos e resenhas. Casou-se com a filha de
um fazendeiro, com quem teve oito filhos.
A primeira publicação de "Confissões" foi feita no London Magazine e Blackwoods em 1821,
através de capítulos e de forma anônima, e tornou-se rapidamente um sucesso.
Resumo da obra :
A grande quantidade de ópio que Quincey ingeria na época da escrita do livro « Confissões de
um comedor de ópio » deve ser responsável pela estrutura lógica não muito firme que segue a
condução da história, e o próprio autor afirmou que escrevia como se estivesse « pensando alto
», estrutura esta que se assemelha ao conceito de associação livre descrito por Freud.
« Mas a minha maneira de escrever é quase a mesma de pensar alto, seguindo meus próprios
humores, em vez de considerar em demasia quem está me ouvindo ; e se parar para pensar no
que devo dizer a essa ou aquela pessoa, logo estarei em dúvida sobre se o que digo é
realmente adequado »(p.117)
Neste livro Thomas de Quincey procura demonstrar os efeitos do ópio sobre a capacidade de
pensar,sentir e sonhar, ao que os estudiosos do autor e da obra definem como um estudo
pioneiro, pré-psicanalítico, da interferência de uma instância « incontrolável » na mente.
Quincey inicia seu livro pontuando que não é fácil a tarefa de expor fatos íntimos de sua vida ao
público, mas que o motor que o move em tal tarefa seria uma inquietação que o acompanha
diante da vida e a busca de explicações no âmbito da filosofia para o sentido da mesma, sendo
que a sua experiência (exagerada como ele admite) com o ópio teria dado oportunidade de uma
vivência profunda do sentido da dor e do prazer.
O autor nos conta que após o falecimento do pai, foi entregue aos cuidados de tutores,
considerados por ele como rudes, ignorantes e que considerava intelectualmente inferiores a
ele, com exceção de um, que lhe abriu o território para o conhecimento da língua grega, que
articulava e manejava com excelência.
Sentindo que a vida escolar não dava conta de responder às suas demandas existenciais e
intelectuais, Quincey foge do colégio e dos tutores, para tentar o ingresso em uma universidade.
Entretanto, o dinheiro que tinha se esvai muito rapidamente e passa a viver de favores e tornase
um « homeless », onde experimenta uma angústia física muito profunda causada pela fome.
Recusa-se a pedir dinheiro para família, porque não quer ser localizado.
Em Londres, divide o espaço de uma casa abandonada com uma criança de dez anos, de quem
se tornou um companheiro de miséria. Sentia-se esgotado porque não conseguia dormir em
decorrência das fortes dores no estômago; neste período alimentava-se com as migalhas e
sobras das mesas dos restaurantes.
Durante o dia caminhava pelas ruas de Londres e foi numa destas andanças que Quincey
conheceu Ann, uma prostituta que lhe salvou a vida, dando um vinho do Porto condimentado no
momento em que ele estava desfalecendo, atitude esta que será sempre lembrada por ele, visto
que Ann mal tinha dinheiro para sustentar-se.
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Depois deste momento Quincey decide entrar em contato com amigos da família para que
intercedam ante sua situação. Estes lhe emprestam dinheiro e ele consegue entrar para a
universidade, também começa a trabalhar. Todos os dias procurava por Ann, pois tinha
prometido ajudar-lhe na retomada de sua propriedade, mas nunca mais a encontra após o
retorno de uma breve viagem.
Inicia-se um período que Quincey denomina como aquele regido pelos « prazeres do ópio ». O
autor conta que foi acometido por uma forte nevralgia, que ele considera resultado da ausência
de seu ritual diário (e infantil) de lavar a cabeça todos os dias pela manhã com água fria, sendo
assim, sai da cama, lava a cabeça e dorme com os cabelos molhados. Na manhã seguinte
acorda com dores reumáticas, e um conhecido da faculdade indica o ópio como tratamento.
Quincey abençoa aquele dia, este amigo e o farmacêutico que lhe vendera o ópio, que é
considerado por ele como um presente dos céus. Sente-se radiante por ter descoberto o elixir
que poderia conter todas as mazelas da humanidade, com a vantagem de que « êxtases
portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela
diligência do correio »(p.80).
O autor entra em defesa do ópio, embalado pela intensa sensação de prazer que a substância
lhe proporciona, e que ao contrário do álcool, não inibe, e sim expande as faculdades mentais e
afetivas.
Na etapa seguinte da obra, inicia a descrição de um período que aponta como aquele sendo
vivido através das « dores do ópio ». Com a saída da universidade ele vai viver em uma cabana
com uma empregada, de onde escreve artigos para jornais, textos. A morte da filha (criança
muito querida por Quincey) de um amigo é sentida com uma manifestação somática no
estômago, para qual ele administra o ópio, aumentando progressivamente a dosagem ingerida
de láudano, até chegar ao consumo diário de aproximadamente oito mil gotas (320 grãos).
Neste momento Quincey revela o incômodo de não coordenar seus pensamentos racionais, e o
pavor provocado pelos sonhos, que lhe traziam muito sofrimento.Descreve nestes termos :
« De noite, quando ficava acordado na cama, longas procissões( de fantasmas- grifo nosso)
passavam por mim com uma pompa melancólica ; arrepios de histórias sem fim, que para o
meu sentir eram tão tristes e solenes como se fossem histórias tiradas de tempos antes de
Édipo ou Príamo, antes de Tiro e antes de Mênfis »(p.126). Passando então na parte final da
obra a descrever os sonhos, que são encenados em seu cérebro, « palco do terror »...
Qual seria então o desejo de nosso autor? Para Radmila Zygouris, o sonho é o objeto de desejo
para o insone. Por que este desejo era para Quincey tão ameaçador? Esta mesma autora
pontua que a espera do sono se processa como uma modalidade de angústia, pois seria neste
momento que entramos em contato com os horrores do tempo e da perda, constituindo-se assim
esta espera como objeto substitutivo. Entretanto este é um objeto que faz sofrer... Não teria ele
um caráter punitivo? Ou seria defensivo?
Radmila aponta que o sono é sempre um retorno. Retorno do infantil, do recalcado, do Real, a
um estado de não existência que pode ser entendido como a morte. Morte que assombra nosso
autor, apesar de lhe causar fascínio e atração. Parece que Quincey sentiu-se incomodado com a
incapacidade de controlar os efeitos da droga em seu corpo.Foi exatamente a constatação da
possibilidade da proximidade da morte que o levou a uma redução do consumo do ópio (embora
tenha consumido-o até o fim da sua vida).
Algumas considerações preliminares:
Em seu estudo autobiográfico, Freud situa uma tradição, que teria se iniciado na França, da
leitura de sua obra pelos homens de letras, que prosseguiram numa modalidade já apresentada
por ele (estudos sobre Leonardo da Vinci), da análise de artistas e suas produções.
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Alguns críticos desta forma de trabalho questionam que não é possível que deitemos uma obra
no divã, e que a única aplicação da psicanálise seria dentro do próprio setting analítico.
Entendemos que seria limitada a tentativa de analisarmos um personagem ficcional como se ele
fosse um paciente de carne e osso, com sua história e subjetividade. Entretanto, muitos
analistas vêm se debruçando sobre os estudos da relação existente entre o trabalho de
composição artística (que pressupõe a existência de um sujeito), e a psicanálise. Modalidade
esta que a nosso entender segue um caminho traçado por Freud.
Situando dentro desta temática, Mannoni (1995) em seu texto "Trauma e criação" aponta o
processo criativo como uma possibilidade de elaboração psíquica por parte do sujeito. Este
processo ocorreria graças à possibilidade da (re) construção de uma experiência inicial de
desamparo. O ganho, com esta atividade poderia ser a libertação de um movimento de
repetição sintomática.
Citando Freud, Mannoni destaca que o trabalho no terreno da fantasia permite uma passagem
do princípio do prazer para o da realidade, através de uma substituição das satisfações
pulsionais.
Dentro desta perspectiva procuraremos entender qual seria o papel da angústia no texto
"Confissões de um comedor de ópio", enfocando na descrição dos sonhos por ele apresentados,
traçando um singelo diálogo com o livro da Interpretação dos Sonhos (1900) de Freud.
Sonhos de um comedor de ópio:
Na última parte de seu livro Quincey passa a fazer uma descrição de seus sonhos, classificados
por ele como apavorantes e angustiantes. A ausência das associações do sonhador limitam uma
possibilidade de interpretação. Pretendemos fazer aqui algo mais semelhante ao processo
descrito por Freud em seu texto "Construções em análise" (1937), onde preencheremos algumas
lacunas da fala do autor com o referencial freudiano acerca dos processos oníricos.
"... uma simpatia parecia surgir entre os estados de sono e vigília do cérebro; tudo que eu traçasse
através de um ato voluntário na escuridão era bem capaz que logo surgisse em meus sonhos. (...) todas
as coisas criadas por mim dentro da escuridão logo se transformavam em fantasmas aos meus olhos
(...) uma vez traçados em cores demasiadas e visionárias ganhavam (...) um insuperável esplendor que
desgastava meu coração." (p.127).
Nesta passagem Quincey vai descrevendo como pensamentos da vida de vigília ganham
terreno em seus processos oníricos. Vemos aqui a descrição de uma das estruturas que Freud
aponta como constituintes dos sonhos, os restos diurnos onde há um resto de energia que não
foi investido durante o dia. Muito possivelmente também está presente uma outra estrutura a
partir da qual um sonho é gerado, que seria a excitação do desejo inconsciente durante a
atividade de vigília, que vai encontrar no sonho possibilidade de realização.
Quincey descreve que estes sonhos eram acompanhados por estados de ansiedade e profunda
melancolia, sentia-se descendo a fendas profundas e escuras e era acometido por idéias de
suicídio, assombrado como que por fantasmas. Interessante apontar que ao longo do livro,
durante as passagens onde descreve a impossibilidade de dormir devido à fome, fala também
dos fantasmas que as crianças encontram à noite. Estaria o nosso autor sendo assombrado por
fantasmas "infantis"?
Tanto Radmila (1995) quanto Mannoni (1995) destacam a sensação de abandono presentes nos
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sonhos de angústia. Durante o período de miséria que viveu em Londres, Quincey dormia em
uma casa abandonada abraçado a uma criança pobre para que esta se sentisse mais segura.
Justo ele que parecia ter sido abandonado pela provedora (e maternal) sorte, e que foi
realmente abandonado por um pai que morreu tão cedo e não pôde evitar seu sofrimento...(não
é por acaso o emprego numeroso da palavra abandono, parece que este é um fator de repetição
ao longo da obra).
"Os incidentes mais momentâneos da infância ou as cenas esquecidas dos últimos anos eram
freqüentemente revividos. (...) Disso, pelo menos estou seguro: não há nada que possa ser esquecido
pela mente".(p.128/129).
Tal citação encontra forte ressonância na afirmação de Freud no capítulo VII, item d-do livro da
Interpretação dos Sonhos, quando afirma que "no inconsciente nada pode ser encerrado, nada é
passado ou está esquecido".
Ao longo da leitura do livro da IS, acompanhamos como Freud vai construindo o conceito de
aparelho psíquico, utilizando para esta costura a linha do desejo. Acompanhando o caminho do
desejo conforme os referenciais da psicanálise, percebemos que é ele mesmo que nos constitui
enquanto sujeitos, e que nossas primeiras relações com o mundo serão atravessadas pelo
desejo. Esta experiência no início perceptiva, e que caminha em direção a uma representação,
deixa marcas, traços (mnêmicos), que serão revisitados, atualizados. E através da construção
da definição de sonho vamos percebendo como Freud alcança este ponto:
O sonho é a realização de um desejo (cap. II).
O sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado).(capIV).
Que conteúdos latentes estariam por trás das cenas infantis que apareciam nos sonhos de
nosso autor? Seguindo a fala posterior à citação apresentada ele destaca a lembrança de um
tio, que numa situação de quase-morte vê sua vida passada como num filme. Colocando-se
numa posição análoga a seu parente, fala da lembrança de detalhes insignificantes de sua vida,
saberes incompreensíveis e faltas que não mais podem ser escondidas. Tal idéia nos remeteu à
questão da sexualidade infantil, a formulação de hipóteses, a busca de respostas acerca de um
saber (sobre o desejo) transmutado em uma curiosidade sexual, e a culpa associada a um
prazer sentido no próprio corpo via masturbação.
Quincey fala de sonhos onde ocupava postos de poder durante o Império Romano (era um leitor
dedicado da História de Roma), e descreve cidades e palácios pomposos, com torres que alcançavam
as estrelas. Muitas vezes estes palácios eram invadidos por centuriões e surgia então uma guerra
sangrenta.
Em seus sonhos descrevia que os sentidos de espaço e de tempo foram incrivelmente
aumentados, as construções e paisagens eram exibidas "numa proporção muito maior que o
olho físico é capaz de oferecer".(p.128). O mesmo ocorria no que diz respeito à percepção de
tempo, e o autor descreve a sensação de ter vivido 70 ou 100 anos em apenas uma noite, ou
que esta extensão de tempo havia se multiplicado em milênios.
Neste ponto podemos considerar o traço narcísico (aqui na forma de megalomania), que teve
tantos desdobramentos na vida do autor.
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Lembremos que a fuga da escola deu-se porque Quincey não pôde confiar aos seus tutores um
papel transferencial de autoridade. Era como se não houvesse assimetria, ele achava que os
professores não tinham nada a lhe acrescentar, pelo contrário, ele é que tinha a lhes ensinar.
Sair de casa sem destino e dinheiro pressupôs também uma certeza de que ele conseguiria se
virar, pois era "esperto" (onipotente). Entretanto, conhecimento e saber não podem ser
confundidos, parece-nos que a ausência de respostas, a sensação de vazio estava encoberta
por estes sentimentos de poder e controle, e a posterior impressão de preenchimento causada
pelo ópio teria sido um fator decisivo (embora ilusório), no processo de dependência química
(sobre a qual ele dizia ter controle).
No capítulo VI, item "e" do Livro da IS, Freud fala da representação por símbolos nos mesmos.
Torres enormes que tocam as estrelas remete-nos à imagem do falo – pênis, que estaria
representando o desejo inconsciente da obtenção do poder, aquele que tem o falo seria o
detentor do poder.
Aos sonhos arquitetônicos surgiam aqueles com lagos e grandes extensões de água que o perseguiam.
Sintomaticamente Quincey pensava estar sofrendo de algum "estado hidrópico", com manifestações
somáticas de dores de cabeça, e o medo de estar enlouquecendo.
As águas iam mudando de aspecto e de lagos translúcidos
transformavam-se em mares e oceanos.
Além de retomar o aspecto antes apresentado no que diz respeito à questão do poder, aparece
aqui a temática do medo da loucura. Foucault, em seu artigo A água e a loucura (1963),
descreve que há uma relação estabelecida entre a água e a loucura, muito em função dos
tratamentos praticados pela medicina asilar a partir do século XIX, através de banhos e
duchas.Para este autor a água como tratamento contra a loucura teria quatro funções: ela é
dolorosa, ela humilha, dilui e castiga. Pontua também que a psicanálise se apropria de um
elemento natural diferente, o ar no qual as palavras se propagam (o mesmo ar, que em meados
do século XIX também vai ser associado à loucura, como a fumaça aspirada do ópio) e que
encontram no campo analítico espaço para simbolização e significação.
Não estaria Quincey, conforme aponta Freud, procurando atribuir imagens e palavras para o seu
desejo através do trabalho de representabilidade do sonho? Mannoni (1995) aponta que "a
angústia proviria do elemento recalcado que torna a se mostrar, e é encontrado sob a forma do
que Freud denominou inquietante estranheza".(p.16), que deveria ser algo esquecido, mas que
insiste em voltar, e que graças ao recalcamento não conseguimos reconhecer como pertencente
ao nosso psiquismo.
Uma próxima etapa é descrita pelo autor como a "tirania do rosto humano", e das águas dos oceanos
começaram a aparecer rostos ("rostos implorando, furiosos, desesperados, surgidos das profundezas
aos milhares, por gerações e por séculos. Minha agitação era infinita, minha mente vomitava e moviase
como oceano" p.135).
Esta engenhosidade nos sonhos é descrita por Freud como o indicativo do trabalho do sonho
(bem como a sensação, também descrita por Quincey, da longa duração de um sonho). Ele
aponta que um sonho pode levar dias para se constituir.
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Quincey mostra num movimento pós-sonho (elaboração secundária), que faz menção à época
que perambulava entre as multidões pelas ruas de Londres. Além da questão da exarcebação
das quantidades (este parece ser um tema que se repete). Após perder Ann ele passou vários
anos procurando seu rosto na multidão. Justamente esta mulher, que parecia encarnar a figura
de irmã, mãe e amante no imaginário do autor. De qualquer forma ela era a condensação de
três figuras femininas que se perderam...
Pensando no significante ´face`, podemos pontuar que estes rostos eram também portadores de
diferentes aspectos que o constituíam, muitos dos quais desconhecidos (inconscientes) ou
tiranos (superegóicos).
Descreve então os sonhos com temáticas asiáticas, e a perseguição por parte do malásio, onde em
meio às construções, tradições e supertições asiáticas, sentia-se cercado de pessoas.O sonho evoluía
para uma condensação de ambientes tropicais, sua vegetação, usos e costumes. Sentia-se olhado e
ridicularizado pelos animais. "Corria por pagodes e era encerrado, por séculos, no topo, ou em quartos
secretos; era o ídolo, o sacerdote, era consagrado, sacrificado; fugi da ira de Brama por uma floresta
asiática; Vishnu me odiava, Shiva me esperava. De repente, cheguei à frente de Isis e Osíris; havia
feito uma proeza, disseram, que deixava trêmulos os crocodilos e as íbis. Fui enterrado, por milhares de
anos, em um caixão de pedra, com múmias e esfinges, em quartos estreitos no coração da pirâmide
eterna. Fui beijado por crocodilos de beijos cancerosos e abandonado entre os juncos e o lodo do
Nilo".p.137
Numa das passagens do livro Quincey descreve que um dia recebera em sua casa a visita
inusitada de um malásio, que causou estranheza e curiosidade em toda a vizinhança. Ninguém
conseguia compreendê-lo e não querendo parecer ignorante diante de sua empregada e
vizinhos, utilizou algumas palavras em grego e o nome empregado no oriente para ópio, ao que
o malásio sorriu. Mesmo sem continuar entendendo o que ele queria dizer, um vínculo foi criado
pelo ópio, e nosso autor livrou-se de passar um ridículo frente aos seus. Deu uma quantidade
suficiente da droga para o estrangeiro, na tentativa de animar-lhe na caminhada, e ficou
estarrecido quando o malásio colocou todos os grãos na boca, pois era uma dosagem capaz de
matar um homem. Quincey ficou preocupado com o que poderia ter acontecido ao homem, mas
como não ouviu nenhuma notícia, pressupôs que ele deveria estar acostumado ao ópio.
Parece que a possibilidade de existir alguém que consumisse mais ópio que Quincey (ele
constantemente gabava-se por suportar mais ópio do que qualquer literatura médica já havia
descrito), deixa nas entrelinhas do texto uma idéia de competição. Competição como aquela
travada com seu irmão, que era considerado por ele como "tão inventivo quanto selvagem", e
que via com desdém sua capacidade de sonhar.
Que segredos continham os quartos nos quais era trancafiado? Não seriam os deuses descritos
substitutos para as figuras fraternas e parentais? Novamente aqui o tema do abandono é
explicitado, abandono este que ele próprio "atuou" com sua saída de casa.
Vemos também mais um dos aspectos do trabalho dos sonhos, o deslocamento, que junto à
condensação e representabilidade agem a serviço da censura, de modo a tornar o sonho
inteligível e suportável para o ego.
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A seguir Quincey passa a narrar sonhos com a temática da morte de pessoas queridas. Ele fala de verse
na região dos Alpes, a vista do cemitério e a tumba de uma criança que ele amara e que morrera
recentemente. Ao abrir o portão do jardim viu que havia uma mulher sentada, e esta era Ann, e sentiase
aliviado por tê-la encontrado, mas o escurecimento das nuvens levou-o novamente à visão dos
tempos em que andava com ela pelas ruas de Londres.
Será no capítulo V, item d que Freud vai falar sobre sonhos com a morte de pessoas queridas,
que também podem desencadear angústia. Sabemos que duas irmãs de Quincey morreram
crianças, dentre elas a sua irmã mais querida, Elisabeth, que foi por ele velada. Posteriormente
acompanhamos a busca de Quincey por Ann, que sumiu para sempre, e cujo rosto ele não
esquece. Por fim sabemos que ele tinha muita afeição pela filhinha de um amigo fazendeiro (ele
casou-se com a filha mais velha desta pessoa). Foi a morte desta criança que lhe trouxe uma
forte perturbação gástrica a partir da qual ele passa a consumir ópio diariamente.Parece-nos
que há uma cadeia associativa que liga estas figuras femininas a perdas.
No texto acima citado Freud descreve como o conteúdo latente de sonhos com a morte de
pessoas queridas podem ocultar uma rivalidade entre irmãos, e comenta que a morte de
crianças pequenas circula no universo da fantasmática familiar, e têm um desdobramento nas
neuroses subseqüentes.
A concepção de morte para uma criança pequena seria diferente da idéia da noção de
decomposição física que tem um adulto, e se associaria à idéia de que quem morreu apenas foi
embora. Desta forma, Freud nos leva a concluir que a constatação por parte do adulto do desejo
(infantil) da morte de uma pessoa querida pode resultar em culpa, que na constituição onírica
pode ganhar os contornos da punição. Todos estes componentes seriam oriundos do anunciado
processo do Complexo de Édipo.
O último sonho descrito por Quincey, fala de sua curiosidade ante uma movimentação que parecia ser
uma coroação, e o movimento de uma luta a qual ele não conseguia entender por quem e como.
Novamente uma confusão de pessoas, luzes, formas e a visão de despedidas, a sensação de adeuses
eternos. "Palavras pronunciadas num suspiro, como suspiravam as profundezas do inferno quando a
mão incestuosa (grifo nosso) pronunciou o nome da Morte. Adeuses eternos! Uma e outra vez...
adeuses eternos! Acordei em convulsões e gritei:" Nunca mais vou dormir!". (p.143).
O desejo do pré-consciente é, conforme indica Freud no capítulo VII do livro da Interpretação
dos Sonhos, o de dormir. Podemos entender, a partir deste referencial, que os sonhos de
Quincey não conseguiam muitas vezes levar a cabo a formação de compromisso entre o
inconsciente e o pré-consciente, uma vez que a realização do desejo inconsciente feria o préconsciente
com violência.
Desta forma podemos saber que há desejos envolvidos nos sonhos de angústia instalados no
inconsciente e repudiados pelo pré-consciente, que mesmo em primeira instância se apóiam nos
mecanismos de distorção onírica, auxiliados pela representabilidade e processos de censura nos
sonhos, e em última instância, quando trabalham com alta intensidade psíquica eles acabam por
despertar o sonhador.
Além disso, Freud questiona a questão do prazer e desprazer, uma vez que um pensamento
que pode ser considerado desprazeroso por ocasião do sonho pode ter sido prazeroso em sua
origem (pré-recalque).
Neste sentido os afetos teriam um papel fundamental, uma vez que é a supressão dos mesmos
uma tentativa de evitar o desprazer, entretanto tais afetos estariam também ligados às
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representações inconscientes que seriam recalcadas. A liberação de um afeto sem uma
representação à qual possa estar atrelada também é um fator ansiógeno.
Por fim, Freud pondera que a angústia nos sonhos pode ser um problema de angústia associada
à neurose, sendo que a angústia neurótica provém de fontes sexuais, cujos traços podemos
identificar nos sonhos descritos por Quincey (sonhos de onipotência, rivalidade, de figuras
femininas, sonhos que demonstram perseguição, culpa, medo de destruição/castração).
Neste ponto seria importante que refletíssemos sobre um dos pressupostos do autor, que atribui
ao ópio a responsabilidade pela produção dos sonhos de angústia. Para Thomas de Quincey
estes sonhos terroríficos seriam resultado do efeito do ópio em seu cérebro.
Não podemos deixar de negar o efeito da droga como facilitadora num processo regressivo,
onde ocorre uma maior acuidade dos fatores perceptivos. Entretanto, por mais que houvesse
um certo aguçar das sensações não podemos, depois da produção freudiana sobre o aparelho
psíquico, e depois da leitura do livro da Interpretação dos Sonhos, considerar que os sonhos
descritos foram produzidos apenas graças ao efeito da droga.
Esta afirmação só pôde ser feita a partir da conceituação de um aparelho psíquico, que consta
de uma instância inconsciente, onde não há aleatoriedade. Embora Quincey suspeitasse (mas
rejeitasse) que havia dentro dele uma parcela incontrolável (justamente aí os seus desejos de
onipotência esbarravam), ele nunca encontrou uma resposta conclusiva; entretanto no ano de
sua morte (1859) uma criancinha em Viena, aos três anos de idade já era uma promessa...
Gostaria de agradecer à professora Laurinda, demais professores e colegas de curso, pela
companhia e contribuição neste processo de formação (às vezes tão angustiante...).
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "A Interpretação dos sonhos" in Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MANNONI, M. Amor, ódio, separação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
MOTTA, M. Foucault-Problematização do sujeito: Psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
QUINCEY, T. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L & M Editores, 2001.
ZYGOURIS, R. Ah! As belas lições!São Paulo: Escuta, 1995.
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